Gerson Smiech Pinho (*)
Em 1949, o antropólogo Claude Lévi-Strauss examinou o relato de uma tribo sul-americana em que um xamã trata uma mulher que agoniza no trabalho de parto. Durante a intervenção, o xamã não toca a paciente nem administra qualquer remédio. Opera apenas por meio das palavras de um cântico, que não só apazigua o mal-estar, mas permite que o trabalho de parto se realize.
O artigo que traz este relato — A Eficácia Simbólica — destaca a confiança que o xamã e sua paciente têm nas palavras e o efeito que a linguagem exerce sobre eles enquanto integrantes de uma comunidade. Que o mito entoado pelo xamã não corresponda a uma realidade objetiva não tem relevância, pois importa a crença compartilhada pelo grupo social.
Essa breve narrativa demonstra que a realidade que habitamos é composta por palavras. Aquilo que percebemos e experimentamos ganha sentido por meio da linguagem e dos discursos que compõem o laço social que nos reúne. Mas de que modo a realidade é tecida a partir da posição da linguagem na época atual, essa que nos toca viver?
Quais as possibilidades de intervenção quando, no laço social, localizamos submissão e passividade frente à sugestionabilidade para adesão instantânea a determinados enunciados? Nessa direção, a psicanálise ocupa um lugar fundamental, na medida em que possibilita fazer furos e produzir a equivocação que leva à produção do pensamento—insistindo em fazer lembrar o que a linguagem simplista busca apagar."
Em nossos dias, torrentes de informações irrompem a todo instante, sem intervalos, por diversos canais — WhatsApp, Instagram, Twitter, entre outros. Fazem parte do cotidiano, armazenadas nos apetrechos eletrônicos que carregamos. No entanto, não somos meros receptores das notícias que chegam, pois basta pressionar uma tecla para compartilhá-las com os seguidores. Nesses tempos de avanços tecnológicos, qualquer um torna-se criador e disseminador de conteúdos que inundam as redes sociais e se multiplicam em meio à massa.
A quantidade de informações com as quais se lida, muitas vezes contrárias e discordantes, produz a sensação de que existem realidades paralelas e contraditórias que coexistem. Qualquer afirmação é relativizada por outras que venham a negá-la, atenuá-la ou contradizê-la. Distintos pontos de vista se tornam equivalentes, já que os quadros de referência que permitem introduzir uma diferença de valor entre eles, como a ciência, enfraquecem em meio à torrente de múltiplas opiniões. Proposições consideradas como verdades sólidas são equiparadas a uma pluralidade de crenças orientadas por memes e likes, oriundas das “bolhas” que habitam as redes sociais. É assim que se constroem perspectivas que parecem aberrações, como o terraplanismo e os movimentos antivacina.
O discurso assim estruturado não consiste necessariamente na negação de um evento, seja o formato da terra, a eficácia de vacinas, a legitimidade de uma eleição ou o aquecimento global. Ao contrário, o fato em questão é afirmado ao mesmo tempo que é desmentido por outras premissas associadas a ele — “sim, isso é verdade, mas sob outra perspectiva…”. Tal enunciado pode incluir posicionamentos contrários e dissociados, os quais coexistem sem que se alterem, como quando ouvíamos que “sim, o coronavírus está aí, mas é só uma gripezinha”.
Tal construção discursiva propõe a adesão instantânea à crença com exclusão do pensamento. Entre a informação e sua aceitação, não há intervalo para o pensamento, para que alguma dúvida se instale —efeito de contágio comum entre os integrantes de uma massa, semelhante à hipnose. Cria-se um achatamento da linguagem, simplificador do discurso, que exclui de antemão o que se quer negar e que aceita somente o que se quer realidade. Economiza-se, assim, o intervalo e o tempo necessários para o pensamento, a dúvida, a pergunta e o equívoco.
A psicanálise se situa no avesso desse modo de discurso, pois opera no terreno da pergunta e do equívoco. Na aurora do século 20, Freud ousou dar ouvidos aos sonhos, aos lapsos e detalhes da vida cotidiana, àquilo que faz rir ou que faz sofrer. Buscou decifrar os pormenores da existência comum e a verdade neles contida, sempre incompleta e inacabada. Desde cedo, Freud rejeitou a hipnose e a sugestão para confiar nos efeitos da palavra e na transferência, essa relação particular tecida entre um sujeito que fala de seu sofrimento e aquele que o escuta.
Quais as possibilidades de intervenção quando, no laço social, localizamos submissão e passividade frente à sugestionabilidade para adesão instantânea a determinados enunciados? Nessa direção, a psicanálise ocupa um lugar fundamental, na medida em que possibilita fazer furos e produzir a equivocação que leva à produção do pensamento — insistindo em fazer lembrar o que a linguagem simplista busca apagar.
(*) Psicanalista, membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (APPOA) e doutor em Psicologia Social e Institucional pela UFRGS
Evento
"Dimensões da Linguagem: Transferência, Submissão e Subversão" é o tema das Jornadas Clínicas da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (APPOA), nos dias 18 e 19 de novembro, no Hotel Plaza São Rafael. O evento irá contar com os conferencistas Richard Serraria, compositor, cantor e poeta, e o psicanalista Isidoro Vegh, membro-fundador da Escola Freudiana de Buenos Aires. Também fazem parte da programação os psicanalistas Robson de Freitas Pereira, Inajara Erthal, Lucia Serrano Pereira, Elaine Rosner Silveira, Heloisa Marcon, Giovana Dalcin Netto, Simone Mädke Brenner, Ligia Gomes Victora e Elaine Starosta Foguel. Mais informações pelo fone (51) 3333-2140, no WhatsApp (51) 98137-5614 (horário comercial) e em appoa.org.br.