Por Carlos Alberto Gianotti
Professor de Física, editor-executivo da Editora Unisinos
"Pedi tão pouco à vida e esse mesmo pouco a vida me negou.
Uma réstia de parte de sol, um campo próximo,
um bocado de sossego com um bocado de pão (...)
Isto mesmo me foi negado, como quem nega uma esmola
não por falta de boa alma, mas para não ter que desabotoar o casaco."
Fernando Pessoa, no Livro do Desassossego
Já faz alguns anos que, beirando o modismo entre a elite instruída, volta e meia se fala sobre a importância de o indivíduo buscar o conhecimento de si mesmo. Prescrição inscrita na porta do templo de Apolo, em Delfos, “conhece-te a ti mesmo!” é rematada por outra injunção, “nada em excesso!”, princípio da moderação em tudo, que conduziria a uma vida plena – desde que também cada um se conhecesse a si mesmo. O filósofo Eduardo Giannetti, recentemente empossado como membro da ABL, explora minuciosamente essas duas prescrições complementares em sua singular obra Autoengano (Companhia das Letras, 1999). Giannetti estabelece relação entre as duas ideias – a de conhecer-se a si mesmo e a de nunca se exceder. A própria prescrição do comedimento deve ser levada a sério, mas sem superabundância, isto é, nada em excesso – até o nada em excesso. Psicanalistas, por sua vez, têm que, ao perscrutar a sua essência visando ao autoconhecimento, os indivíduos entenderão melhor a sua forma de ser, ou de interagir com os demais.
Ainda que estejamos diante de um legado da sabedoria ancestral grega tacitamente aceito como verdadeiro, não custa indagar: por que é importante conhecer-se a si mesmo e, principalmente, em que consistiria exatamente isso? Sem tergiversações ou prolixidades evasivas, o que é se conhecer e como o sujeito autoinvestigante na busca desse conhecimento conclui que seu propósito foi alcançado? Uma tal indagação, diante da afirmativa apolínea contemporaneamente assimilada como uma verdade pelo senso comum culto, coloca o indagador como um tipo iconoclasta, ou, no dizer de J. S. Mill, “na perigosa condição de ser considerado lunático”.
O português Fernando Pessoa (1888-1935) é conhecido particularmente por sua obra poética; todavia, revela-se também como um original prosador filosófico no Livro do Desassossego (Companhia das Letras, 2011), obra que construiu durante cerca de 20 anos antes de morrer, composta por fragmentos de narrativa que atribuiu ao seu semi-heterônimo Bernardo Soares. São escritos que têm natureza intimista com significativos registros do sofrimento intrapsíquico humano: “Nestas impressões sem nexo, nem desejo de nexo, narro indiferentemente a minha autobiografia sem factos, a minha vida sem vida. São minhas Confissões, e, se nelas nada digo, é que nada tenho a dizer. (...) O que confesso não tem importância, pois nada tem importância”.
Constituído por centenas de fragmentos descontínuos, o narrador os conseguiu tornar um conjunto complexo que espelha o abandono, os conflitos e o desespero do ser humano diante da vida.
O conhecido poema Tabacaria, pelo heterônimo Álvaro de Campos, escrito na mesma época do Livro, inicia com estes três versos: “Não sou nada./ Nunca serei nada./ Não posso querer ser nada”. Pois esses versos exprimem, na essência, todo o percurso do Livro do Desassossego, por cada um dos inúmeros passos que o compõem, é isso que nele se encontra. O narrador diz que não sabe sentir, que não sabe pensar, que só resta o tédio de não querer, sem que sequer queira o não querer; tudo são sonhos para o narrador que deseja “sofrer sem sofrimento, querer sem vontade, pensar sem raciocínio”. (Pensar sem raciocínio parece atual por aqui.) Os fragmentos variam desde os inúmeros de construção apurada, aos diversos que mostram uma logicidade rigorosa entre afetos e não afetos, sempre com finesse e pitadas de ironia; expressões da descrença absoluta no sentido da vida, permeadas pela autocomiseração e pela inculpação de um outro abstrato por seu vazio existencial – “Pedi pouco à vida e mesmo esse pouco a vida me negou”.
Desde seu desassossego, Pessoa nos fala no Livro acerca do que seria um dom (graça dos deuses) que o ser humano possui: precisamente o de se desconhecer a si mesmo e o de desconhecer os demais. Contrariando a injunção no templo apolíneo, o desconhecer a si mesmo seria condição indispensável: “A alma humana é um abismo obscuro e viscoso, um poço que se não usa na superfície do mundo. Ninguém se amaria a si mesmo (a moderna autoestima) se deveras se conhecesse. (...) Ninguém conhece o outro, e ainda bem que não o conhece, e, se o conhecesse, conheceria nele... O íntimo inimigo metafísico. (...) Entendemo-nos porque nos ignoramos”.
Então, na visão pessoana, nós tanto não conhecemos a nós mesmos quanto não conhecemos a outrem; o que seria propriamente uma dádiva, na medida em que o autoconhecimento, bem como conhecer o outro, implicaria desentendimento. Entendemo-nos em razão desses respectivos ou mutuais desconhecimentos.