Por Waleska Pessato Farenzena Fochesatto
Psicóloga, escritora, psicanalista membro do Círculo Psicanalítico do RS
Pensar a infância tem sido um exercício constante, tanto na minha trajetória profissional de atuação na clínica psicanalítica como também na minha vida pessoal, já que sou mãe de uma menina e de um menino, de 10 e oito anos, respectivamente. Venho há algum tempo me perguntando se o que experimentamos na contemporaneidade é algo da ordem de uma (des)invenção da infância, ousando um trocadilho com o título do curta-metragem de Liliana Sulbach A Invenção da Infância, lançado em 2000. Naquele mesmo ano, assisti a uma palestra do saudoso psicanalista gaúcho José Outeiral, ocasião em que ele nos advertia sobre o fenômeno da expansão da adolescência, no que se refere à sua antecipação e invasão de parte significativa da infância e também no seu transbordamento para a fase adulta. Isso significa que, se esse processo de desinvenção da infância está mesmo em curso, ele não é de hoje.
É sabido que a descoberta da infância começou no século 13 e, de acordo com o que nos conta o historiador Philippe Ariès, sua evolução pode ser acompanhada na história da arte e na iconografia dos séculos 15 e 16, sendo que os sinais de seu desenvolvimento tornaram-se particularmente numerosos e significativos a partir dos séculos 16 e ao longo do século 17. Mas foi com o advento da psicanálise e da psicologia do desenvolvimento que a infância assume um lugar de destaque e passa a ser vista como um período essencial do ciclo vital, uma vez que é, ao longo dela, que se dá a construção do psiquismo e, consequentemente, as bases da saúde mental.
Minha experiência de 20 anos na clínica psicanalítica com crianças e seus pais me permite observar que, na contemporaneidade, existe um movimento sutil de ou negligenciar/terceirizar ou supervalorizar a infância. Muitos cuidadores confundem afeto com permissividade; outros, colocam os filhos como o centro de suas vidas, gratificando-os em excesso e de forma constante, fenômeno denominado, por alguns especialistas da área, de “filiarcado” – filhos que reinam de forma absoluta. Julieta Jerusalinsky nos fala de uma geração acometida pela melancolia, produzida por cuidadores que tentam cercear o encontro de suas crianças com a frustração, gerando a construção de um psiquismo frágil e incapaz de suportar o incontornável desamparo da condição humana.
Freud, no longínquo início do século 19, já dizia que “a falta antecede a criação”, o que significa que o encontro com a dor é parte irretocável da construção de um aparelho psíquico capaz de lidar com ela. É na falta, e somente através dela, que se cria o terreno fértil para a construção de um mundo simbólico, que é para onde nos refugiamos quando a realidade, com toda a sua dureza, se impõe.
Gabor Maté, médico húngaro-canadense com especial interesse em trauma e desenvolvimento infantil, nos diz que “as crianças não se traumatizam porque se machucam, mas se traumatizam porque ficam sozinhas com suas feridas”. O mundo, atualmente, parece carecer de adultos afetivamente disponíveis na tarefa de oferecer escuta, olhar e continência.
Em contrapartida, a sociedade de consumo que faz alusão a uma infância superinvestida economicamente aliada ao contexto imediatista e aos aparatos tecnológicos, oferecem perigosas armadilhas para sujeitos psíquica e simbolicamente empobrecidos. Celso Gutfreind é cirúrgico em sua recente obra A Nova Infância em Análise quando coloca que “a infância vive hoje um paradoxo: por meio dos aportes da psicanálise do bebê e da psicologia do desenvolvimento, sabemos mais ainda sobre a importância decisiva do começo da vida, do ritmo, dos cuidados presenciais, com frequência terceirizados ou negligenciados na contemporaneidade”. Vera Iaconelli, em um programa da CNN, adverte que “nunca um contexto histórico foi tão adverso ao exercício da parentalidade, como o que atualmente vivemos”. A reflexão acerca dessas questões, ao mesmo tempo, já se configura um ato de resistência; e também se faz urgente, em um contexto por vezes tão adoecido, sob o risco de testemunharmos efetivamente o desaparecimento de parte relevante da infância.
Diante de tudo isso, é sempre providencial lembrar das sábias palavras de Lya Luft: “A infância é o chão sobre o qual caminharemos pelo resto de nossos dias!”.