Por Eduardo Bueno
Jornalista, escritor e pesquisador, colunsita de GZH e autor, entre outros, de "Dicionário da Independência: 200 Anos em 200 Verbetes" (Ed. Piu, 2020)
A Independência do Brasil se desvelou perante o mundo, de forma monumental e refulgente em cores, em 8 de abril de 1888 – e em Florença, na Itália. Tudo bem que não foi diante do mundo inteiro, é claro, mas cabe salientar que a rainha da mais importante nação do mundo estava lá, e deixou-se encantar pela obra. Uma parte considerável da elite política brasileira também se encontrava na cidade onde vivera Michelangelo – e, mais do que nela, justo no seio da Academia Real de Belas Artes de Florença, fundada em 1562, pela família Medici, e onde haviam estudado Cellini, Vasari, o francês David, e até Galileu Galilei, além do próprio Michelangelo, é claro. Mas, mesmo se a elite do Brasil não estivesse ali, em peso, bastaria, talvez, a imperial presença de Dom Pedro II e de sua mulher, Tereza Cristina.
O fato é que, quando as cortinas foram descerradas, esses dignatários e os demais convidados de honra deixaram escapar um suspiro de admiração. E não era para menos: diante deles expunha-se a imponente tela de quase oito metros de largura por mais de quatro de altura (7m60cm por 4m15cm, para ser exato). Era uma composição harmoniosa, luzidia, vibrante, que parecia extrapolar suas douradas molduras, quase como se a exalar odores da terra e os sons das patas, o retinir dos metais, o brado dos bravos. Mais do que um quadro, era uma proclamação. A proclamação da Independência do Brasil, ao som do riacho e à luz do céu profundo.
Mas ela estava em Florença, na Itália – e fora pintada 66 anos depois dos fatos que retratava.
O quadro Independência ou Morte! (também chamado Brado do Ipiranga) era obra de Pedro Américo de Figueiredo e Melo, pintor paraibano, criança prodígio, nascido de uma família pobre em Areia, no agreste, resgatado da pobreza por um viajante estrangeiro e mais tarde enviado para a Europa, como bolsista, pelo próprio imperador Dom Pedro II. Em julho de 1886, Pedro Américo foi contratado não pelo Império do Brasil, mas pela Comissão do Monumento do Ipiranga, que desde 1823 lutava para erguer, no local onde Dom Pedro I proferira seu “brado retumbante”, um museu-monumento.
Américo – belo nome, que remete, aliás, ao padrinho do Novo Mundo, o florentino Américo Vespúcio, que esteve duas vezes no Brasil entre 1501 e 1504 –, recebeu a astronômica quantia de 30 contos de réis (6 mil deles adiantados) e três anos para produzir um “quadro histórico comemorativo da Proclamação da Independência pelo príncipe regente D. Pedro nos campos do Ypiranga”. E ele cumpriu sua missão antes do prazo. Mais do que isso, cumpriu-a com desvelo e precisão e acuidade.
Não, porém, com acuidade e precisão históricas. Afinal, Pedro Américo monumentalizou a cena, reconstruiu-a e, deliberadamente, fabulou-a. Ao “fabricar” um Grito do Ipiranga um tanto diferente da cena real, ele criou um quadro mais real que a própria realidade. Uma obra icônica que se tornou, quase 150 anos depois de exposto pela primeira vez, a imagem mais cristalina – e mais cristalizada – que até hoje temos da Independência do Brasil. Claro que, para obter esse efeito, ele pesquisou muito. Veio para o Brasil e esteve no então chamado “Sítio do Piranga”, estudou a cor do barro; recolheu amostras e levou-as para Florença; reconstituiu com minúcias os detalhes dos uniformes da Guarda de Honra e o uniforme de gala do príncipe; leu todos os relatos das testemunhas oculares da história.
E então declarou:
— A realidade inspira, mas não escraviza o pintor.
Pedro Américo sabia que, naquele exato instante em que o sol brilhava com raios fúlgidos no céu da pátria, o príncipe Dom Pedro estava passando por uma revolução intestinal: por sete vezes havia “quebrado o corpo para atender aos chamados da natureza” (como revelou o padre Belchior Pinheiro, presente na cena). Sabia também que Dom Pedro montava “uma bela besta baia” – ou seja, uma mula, e não um possante corcel branco. Sabia que ele não luzia uniforme de gala, mas mera fardeta. Mas sabia, mais ainda, que estava dando cores e tons definitivos à cena inaugural do Brasil Independente. Não a cena real, e menos ainda inserida no contexto do tortuoso processo da Independência. Mas a cena “eleita” para ser o mito fundador do Brasil (supostamente) livre das amarras coloniais.
Só que isso ainda levaria um bom tempo para acontecer. Porque, um ano e 25 dias após aquele 8 de abril de 1888 – quando, diante da rainha Vitória, da Inglaterra, da rainha da Sérvia, do imperador Dom Pedro II e de sua esposa e de uma turma de convidados especiais, Pedro Américo apresentou a tela pela primeira vez, discursando em inglês, francês, italiano e português –, o Brasil enfim aboliria a escravidão. Como consequência quase imediata, o império escravista caiu, feito fruta mais do que madura. E a Independência, convém lembrar, fora, mais do que um ato monárquico, uma articulação da Casa de Bragança, com o pai de Dom Pedro II, separando-se de seu próprio pai. Dom João VI, mantendo o Brasil uma Coroa e não uma república.
E, assim, Pedro Américo tratou de enrolar-se não à bandeira, mas a sua enorme tela, que por sete anos ficaria (quase) esquecida em depósitos poeirentos, na Itália e no Brasil.
O próprio Américo, figura das mais complexas e interessantes, ainda pouco conhecido do público em geral, tratou de virar a casa rapidamente: tornou-se não só republicano de primeira (ou de última?) hora, sendo mesmo eleito deputado constituinte em 1890, mas oferecendo-se para retratar o “novo” herói brasileiro, em substituição aos imperadores que saiam pela porta dos fundos: o “republicano” Tiradentes. Porém, como se tivesse consciência de que estava a retratar um país partido, Américo estarreceu (e ainda estarrece) todos que contemplam a obra que ele fez: Tiradentes Esquartejado, uma pintura macabra, tétrica mesmo, com o “herói” da Inconfidência Mineira espostejado, aos pedaços no patíbulo onde fora enforcado.
Só em 7 de setembro de 1895 – há 127 anos –, Independência ou Morte! pôde ser vista pelos brasileiros. Foi apenas após a inauguração do Museu do Ipiranga (também chamado, mais apropriadamente, de Museu Paulista) que o quadro recebeu um lugar de honra, justo na mais importante sala daquela instituição-monumento. Instituição essa toda erguida para construir e reforçar uma narrativa: a de que a Independência do Brasil, monárquica ou não, fora basicamente uma articulação paulista.
Sim, cansados do “rapinismo centralizador da corte” (para usar a expressão empregada por Bento Gonçalves, na eclosão da Revolução Farroupilha), fartos do protagonismo do Rio de Janeiro, enriquecidos pelo café e reforçados pelo fato de ter sido o berço republicanismo no Brasil, os paulistas resolveram reescrever a história. “Inventaram” assim o 7 de Setembro – que nem de longe havia sido a data mais marcante no turbulento da processo da Independência – e cristalizaram essa efeméride no seio da tradição e da consciência nacionais. Até hoje.
Para isso, tiveram a ventura de contar com a poderosa imagem forjada por Pedro Américo, uma imagem hiper-realista – mais real do que a realidade. Quase como se fosse deepfake.