A ideia que se faz do amor é que vai completar a pessoa. Que, quando o parceria romântica chegar, angústias e aflições vão desaparecer. Professora da Pontifícia Universidade Católica (PUC) do Paraná e autora de diversos livros sobre relacionamentos, a psicanalista Ana Suy, 37 anos, derruba essa fantasia. Em sua obra mais recente, A Gente Mira no Amor e Acerta na Solidão (Paidós, 2022), Ana se dedica a mostrar que, ao amarmos alguém, a parte que antes nos faltava não só seguirá existindo como vai ser duplicada. A partir do enlace, seguimos lidando com nossos desejos, medos e impossibilidades – e precisamos aprender a lidar com os do outro também. O amor não vai fundir um amante ao outro, nem preencher todas as faltas que cada um traz dentro de si. Fica mais fácil, diz a psicanalista, se tirarmos o peso que colocamos em cima dele.
Você defende que não há amor que nos livre da solidão. Que solidão é essa que os amantes têm de encarar?
Estamos sozinhos debaixo de nossa pele. No encontro amoroso, nos distraímos um pouco dessa solidão, paramos de olhar um pouco para ela. Mas tem algo que é impossível compartilhar. Às vezes, colocamos uma tarefa para o amor para que não nos deixe saber dessa solidão. E isso é impossível.
Uma pessoa que lida bem com a solidão tem mais chance de ter relacionamentos melhores?
Não acho que há um tipo de pessoa com mais facilidade para lidar com o outro. Não importa apenas o tipo de pessoa que você é. Depende do encontro que você terá e da invenção que vai fazer na relação com o outro. Todos temos alguma dificuldade no encontro com o outro. Há as pessoas que sofrem mais e as que sofrem menos. Mas não depende da pessoa sozinha, e sim da relação que se estabelece com o outro.
Parece-me que você se dedica a mostrar que, no encontro amoroso, não existe uma fusão.
A ideia de fusão existe e ela nos norteia. Sem a ideia de fusão, não temos a experiência amorosa. Quando proponho que a gente desidealize a fusão, não se trata de que poderemos nos livrar da fantasia de fusão, mas de reformar essa fantasia. Se eu e o outro vivemos como um só, alguém aí deixou de existir. Conseguir se fundir ao outro é deixar de existir.
Você diz que as pessoas que a gente ama vão nos decepcionar. Por que a desilusão é importante?
Porque a desilusão vai nos dar notícia de que o outro continua sendo ele mesmo. Quando temos a fantasia amorosa de fusão, de nos tornarmos um só com o outro, a desilusão vai nos mostrar que o outro ainda é outro. Quando o outro é exatamente aquilo que a gente queria que ele fosse, a gente está se relacionando com a nossa própria imagem, e não com o outro. E existe outra camada de complexidade: aquilo que eu queria que o outro fosse não corresponde, necessariamente, àquilo que eu desejaria que ele fosse. A gente não tem clareza do que desejaríamos que o outro fosse. Às vezes eu gostaria que o outro fosse uma coisa, e então ele é essa coisa, mas isso não me satisfaz. E, às vezes, eu desejo que o outro seja uma coisa, mas ele é outra, e aquilo me move, me anima. Somos seres divididos em relação aos nossos desejos.
Quando temos a fantasia amorosa de fusão, de nos tornarmos um só com o outro, a desilusão vai nos mostrar que o outro ainda é outro. Quando o outro é aquilo que a gente queria que ele fosse, a gente está se relacionando com a nossa própria imagem, e não com o outro.
Ou seja, se a pessoa sempre corresponder ao que eu desejo, pode ser até que eu fique entediada?
A gente acha chato quando o outro nos agrada em tudo, acha que falta química, não ficamos tão interessados. É aquela velha história estereotipada das comédias românticas, quando um fica tentando se adequar ao que supõe que o outro quer, e mesmo assim não funciona. Aí, alguma coisa acontece nessa trama que um dos dois dá notícia do seu defeito, da sua falha, daquilo que tem de equivocado – e então a coisa acontece. A gente se apaixona pelo outro por ser radicalmente outro, e não porque atende ao que idealizamos. As pessoas muito maravilhosas nos entediam. A gente gosta de gente.
A desilusão é o momento em que termina a paixão e entra o amor?
No apaixonamento, me sinto plena, acredito que encontrei algo que satisfaça meu desejo. E o amor é furado – furado pelo outro, na sua radicalidade de ser outro. No amor, existe espaço para algum tipo de desilusão, de perda narcísica, espaço para o outro que é real, que não é fantasia. Por isso que, no amor, há solidão.
Você já afirmou que, quando a gente encontra um parceiro, não encontramos a parte que nos falta, mas ficamos com mais uma parte que começa a faltar. Pode explicar?
Quando estamos sós, preocupados apenas conosco, sabemos do que precisamos para nos sentir em paz. Agora, como vamos ficar em paz se alguém que a gente ama está passando por um tormento? Amar é estar muito suscetível ao outro. É comum a gente falar: “Se eu pudesse, pegava essa dor para mim”. As relações amorosas nos colocam em enorme vulnerabilidade. E isso nos funda. Somos seres de amor.
Pessoas mais solitárias têm dificuldade em ser vulnerável?
Talvez haja pessoas menos interessadas nos outros. Mas eu proponho a diferença entre solidão e isolamento. O isolamento é uma defesa em relação ao amor. Para não ter de me encontrar com a solidão, eu me isolo. Por exemplo, a pessoa acha que vai se apaixonar, que vai levar um fora, e já se antecipa, evitando. É uma perspectiva facilitada pelo nosso modo atual de viver, em que pregamos a independência, amar sem sofrer, não precisar de ninguém. Nossa relação com a tecnologia também nos induz a isso, já que pedimos um transporte sem falar com ninguém, pedimos comida sem falar com ninguém. Hoje, ligar para alguém é quase falta de educação. Temos que ter muito cuidado ao chegar no outro porque vivemos cada um na sua bolha – o outro pode chegar via tela, mas via corpo é mais delicado. Agora, essa solidão que proponho na minha reflexão é a solidão que resta do amor, que vem depois do amor, como marca do desencontro. É o impossível, e não o que a gente evita.
É aquele buraco que nem o parceiro, nem o amigo, nem nossos familiares preenchem.
A fantasia que a gente faz desse buraco é tão assustadora que fazemos de tudo para não saber dele – e, às vezes, nem é tão assustador assim. Neurose é isto: uma defesa em relação ao que a gente não sabe o que é. Saber da própria solidão não é se isolar do outro, é poder suportar esse buraco na relação com o outro, em vez de delegar para ele a tarefa de sumir com esse buraco.
Parece que as pessoas não têm consciência de que, ao compartilhar a vida com outro, levam os traumas que carregam desde a infância.
A gente se relaciona em espelho. Então, supomos que o outro entende o que a gente fala. A gente supõe que o outro sente alguma coisa do mesmo jeito que a gente sente. Nós somos seres de linguagem, então o amor não é uma necessidade no sentido que a fome é – podemos comer qualquer coisa que estaremos satisfeitos. Agora, fome de amor não é satisfeita com qualquer objeto. A gente chama de amor coisas que são muito diferentes. Não tem como saber o que é amor para o outro – eu mal sei o que é amor para mim. Quando a gente fala a palavra amor, assim como a gente fala a palavra solidão, a gente acha que está falando a mesma língua, mas não está. A palavra é o que a gente tem para se aproximar do outro, mas não garante a comunicação plena. E existe outra camada: o fato de que vamos nos modificando o tempo todo. Pensando numa relação duradoura: mesmo que algo tenha dado match no início, nada garante que isso vai durar. Precisamos continuamente rever esse encontro. Ele nunca estará garantido.
Há uma dificuldade de encarar nossos próprios defeitos e qualidades nesse espelhamento?
A ideia que a gente tem de quem nós somos é furada. A gente costuma achar que nos falta alguma coisa, e o outro seria aquele que vai nos completar. No encontro amoroso, eu corrijo minha imagem narcísica. Afinal de contas, se sou cheio de defeitos, mas sou amada pelo outro, significa que não tenho tantos defeitos assim. Então o amor tem essa função corretiva da nossa imagem narcísica. Por outro lado, na experiência amorosa que vai além da paixão, o outro dá notícias dos seus defeitos e problemas, o que escancara os meus defeitos e problemas. Além de eu ter que me resolver com as minhas faltas, também terei de lidar com o fato de que eu não salvo o outro, não completo o outro. Na relação amorosa, em vez de a gente corrigir nossos furos, a gente amplia.
A ideia que a gente tem de quem nós somos é furada. A gente costuma achar que nos falta alguma coisa, e o outro seria aquele que vai nos completar. No encontro amoroso, eu corrijo minha imagem narcísica.
Há pessoas que não abrem mão da solidão porque não sabem lidar com a realidade do amor. Ficam à espera de alguém que se encaixe naquilo que desenharam.
Se você sabe o que quer da vida, e encontra alguém que tem outros valores, vai ser difícil, né? A gente precisa se identificar com o outro para poder amá-lo. Mas tem outra coisa. Eu até posso encontrar alguém que corresponde àquilo que eu queria, mas nada acontece. E, às vezes, é um cara sacana, e aí se forma um casal improvável. Isso me dá notícias do quanto eu sou um mistério também para mim. Como assim, vou me interessar por alguém que não tem nada a ver comigo!? Por isso, na psicanálise, a gente fala que ama com o inconsciente. A imagem que a gente faz de nós mesmos não diz tudo sobre nós. Somos muito mais do que aquilo que a gente pensa que é. O amor é uma completude da nossa imagem e, ao mesmo tempo, uma desconstrução da nossa imagem.
Você fala que a desilusão é importante, mas seguir tendo expectativas com o outro também não é importante?
É impossível viver sem expectativas. Hoje, tem esse discurso de não criar expectativas, mas aí estamos na expectativa de não criar expectativa. A gente sempre vai esperar que alguma coisa aconteça. Por mais bem-sucedida que a realidade for, é mais limitada do que a nossa fantasia. Na fantasia, posso ser uma mulher independente que faz um mochilão pelo mundo e não se apega a ninguém. Posso ser uma mulher que tem família e filhos ou um marido e cinco amantes. Tudo é possível. Agora, na realidade, somente uma dessas coisas será possível. Não se trata de não criarmos expectativas, mas de saber que a realidade não tem como competir com a fantasia, porque é limitada. Precisamos abrir mão de certas fantasias para acolher a realidade. Caso contrário, ficaremos em uma superexigência com a realidade que nos impede de desfrutar. E isso nos deixa isolados, exigindo do outro e de nós mesmos de uma maneira infeliz.
Outro dia eu estava dentro do Uber com uma amiga, casada há muitos anos, e ela me disse que, com o tempo, o respeito entre o casal se perde. O motorista entrou na conversa e contou que, após 40 anos de casamento, finalmente tinha se divorciado, porque ele e a ex-companheira já não trocavam mais carinho – até se humilhavam. Por que os casais podem virar inimigos?
A gente ignora que, no amor, existe ódio também. O amor é constantemente um exercício de se fundir ao outro, que também é um exercício de mortificar a existência do outro. A gente precisa se separar do outro para poder amá-lo. O amor é afetado por essa ausência do outro e é, continuamente, uma tentativa de destruir essa separação. Faz sentido? Sabe aquela expressão “Queria te colocar num potinho?”. Mostra o ódio que há no amor. Se você ama alguém e o coloca num potinho, você acabou com o amor. Amar é suportar a impossibilidade de prender o objeto amoroso. E a gente odeia o objeto amado porque ele, de certo modo, nos faz refém. Ouvimos adolescentes falando: “Não posso fazer isso porque minha mãe me mata”. É justamente a expressão do ódio no amor. Ou seja: eu amo você, então você precisa cuidar disso. Ninguém é mais suscetível a ser objeto do nosso ódio do que o objeto do nosso amor. A quem somos indiferentes, tanto faz.
Só quando a gente se desilude é que conseguimos permitir que o outro apareça.
Por que a desilusão com o ser amado também é importante numa relação de pais e filhos?
Se os filhos não decepcionam os pais, eles ficam capturados em ser aquilo que os pais gostariam de ter sido. Quando temos filhos, vamos desejar que eles sejam aquilo que a gente não foi. Se o filho não se desvencilha dessa idealização, ele se torna uma tentativa de clone dos pais. Mas o filho é outra pessoa. Os filhos precisam se separar dos pais para poderem construir a imagem de quem eles são. E não quer dizer que os pais não vão gostar. É mais comum que os pais encontrem beleza em ver o filho tornar-se outra pessoa que não eles. Mas também tem perrengue.
A desilusão é vista como algo negativo, mas você coloca como algo fundamental para a constituição do amor.
Só quando a gente se desilude é que conseguimos permitir que o outro apareça. Grande parte das pessoas interessadas em pensar o amor são as mulheres. Só agora podemos pensar nisso. O casamento, por exemplo, não surgiu para a gente amar e ser feliz. A proposta era de negociação de bens entre homens. Só quando as mulheres vão ganhando espaço e direitos que começam a questionar o amor. A gente está em um momento de descoberta. Temos poucos modelos de como viver bem uma relação amorosa. Quando olhamos para as gerações anteriores, encontramos coisas que, hoje, as mulheres não aceitam viver. Estamos em uma superinvestigação a respeito do amor.
O que você pensa sobre relacionamentos abertos?
O molde do relacionamento monogâmico, que vai durar para sempre, com família, já não é mais único. Estamos experimentando muitas coisas. E acho interessante que a gente possa rever esses combinados. A experiência amorosa não se replica. Cada amor que a gente tem é único. Então, é bom rever as regras a cada experiência amorosa. Parece que ninguém sabe muito bem o que está fazendo, mas está todo mundo tentando viver o amor de uma maneira que esteja afinada com sua proposta de viver.
Casais que se dão mais liberdade têm mais chances de ficarem mais tempo juntos?
Quando as pessoas estão muito fixadas no próprio relacionamento, acabam colocando muitas demandas em cima do parceiro para que, assim, se sintam bem. E, quando a gente não espera tanto de um relacionamento, no sentido de ter outros interesses, outras formas de ter tesão na vida, então tendemos a exigir menos da parceria amorosa. Por consequência, talvez a gente possa ter experiências mais interessantes.
Tem homens mais ligados e outros que estão ficando para trás. Na pandemia, o número de divórcios aumentou muito. Podemos entender que ficou escancarada a desigualdade na divisão de tarefas, o quanto as mulheres já não precisam mais aguentar certas coisas que aguentavam antigamente.
Pulverizar o amor em outras relações: amigos, colegas de trabalho, família, vizinhos.
Em psicanálise, Freud vai dizer que tudo é sexual, porque tudo que é sexual nos traz prazer na vida. É precário pensar que a única coisa que possa nos trazer satisfação é o desejo amoroso e sexual. Tem mais coisas para fazer na vida, e poder ter acesso a outras modalidades amorosas, para além da romântica, é algo vital.
É que por muito tempo a relação romântica foi vista como a mais valiosa.
Era isso o que se esperava das mulheres. Não é “do nada” essa fixação que nós temos pelo relacionamento romântico e sexual. Seria ingenuidade achar que sairíamos de um século para o outro sem qualquer marca. A possibilidade que hoje temos de acesso às artes, ao trabalho, à literatura, a tantas outras coisas, muda tudo.
E os homens? Estão amando melhor?
Há os que estão se coçando, revendo seus modos, interessando-se por coisas novas, e os que estão dizendo que toda essa mudança não deve acontecer – estão mortificados, tentando voltar no tempo. Tem homens mais ligados e outros que estão ficando para trás. Na pandemia, o número de divórcios aumentou muito. Podemos entender que ficou escancarada a desigualdade na divisão de tarefas, o quanto as mulheres já não precisam mais aguentar certas coisas que aguentavam antigamente. Ou os homens vão ficar na solidão como defesa, ou vão se reinventar, repensar o que é ser homem nos dias de hoje.