Por Paulo Rosa
Médico pediatra e psicanalista, autor de “Andar Térreo” (2019)
Infância, como conceito, é aquisição tardia no imaginário ocidental. Embora haja uma referência bíblica de 2 mil anos atrás sobre crianças, ela permaneceu inexplorada e desatendida. É a conhecida expressão do Evangelho de Marcos, 10, 13, 14: “Apresentaram-lhe umas crianças para que ele as tocasse; mas os discípulos repreenderam aqueles (que as tinham trazido). Vendo isso Jesus indignou-se e disse-lhes: “Deixai vir até mim as crianças e não as afasteis, pois delas e de pessoas como elas é o reino de Deus...” (na nova tradução da Bíblia, por Frederico Lourenço, Companhia das Letras, 2016, p. 191).
Em que pese o assinalamento cristão, a história da infância é estarrecedora. Somente ao final dos anos 1960 a Association for Applied Psychoanalysis decidiu por uma investigação sistemática da história da infância no Ocidente, cujos resultados estão no livro The History of Childhood (1974), organizado por Lloyd de Mause. O que se descortina é uma catástrofe. Assinalo uma ou duas coisas. Na culta Inglaterra, a Sociedade Protetora das Crianças surge em 1895, curiosamente, depois de nascer a entidade Protetora dos Animais, de 1889. Outro aspecto é que durante 800 anos o recém-nascido foi visto como fruto de relação pecaminosa, o que deu base para a licença de espancar bebês e se praticar, como decorrência “natural”, o infanticídio, especialmente com meninas. Nesse contexto, o batismo era entendido, pasmemo-nos, como um exorcismo.
Tal quadro de horrores começou a mudar radicalmente com a chegada do século 20 e, por sorte, de novas mentalidades. Freud fez parte dessa ruptura, sendo um dos primeiros médicos a entrevistar, refletir e registrar o atendimento de um menino de cinco anos, o pequeno Hans, que não saía à rua, em Viena (Áustria), por temor de que os cavalos o mordessem. É chamativo que o nascimento da pediatria coincide com o da psicanálise, ambas há cerca de 120 anos.
Desde então temos visto avanços substanciais. Por quase todo o mundo civilizado vemos práticas de cuidados à criança e aos adolescentes. Mas, elas precisam ser permanentemente lembradas e aprimoradas. Os acontecimentos trágicos que culminaram com a morte de uma menina de três anos em Alvorada, na Região Metropolitana de Porto Alegre, no último dia 11, não nos deixam esquecer.
Mas é o saudável contexto de olhos voltados para a infância que nos mostra uma experiência inédita e inspiradora. Yolanda Ianelli Fernandez, seis anos, é uma paulistana autora das 50 pinturas que compõem a exposição justamente intitulada Infância. A visita ao espaço expositivo, no Theatro São Pedro, proporciona a grata experiência de poder apreciar um talento plástico precocíssimo. Estamos acostumados a ver apenas no campo da música descobertas dessa natureza, ainda na infância, como em Beethoven, entre outros. Pois Yolanda vem quebrar tal rotina. Proveniente de uma família de artistas consagrados – Arcangelo Ianelli (1922-2009), pintor e escultor, é seu bisavô; Alfredo Aquino, pintor, desenhista e escritor, seu avô; Mariana Ianelli, sua mãe, poeta e contista –, Yolanda nasce imersa em um ambiente onde a perspectiva da arte é elemento constitutivo. Soube que, embora ela disponha de seu próprio ateliê, onde brinca-trabalha com frequência, a Yolanda lhe agrada ser assídua frequentadora do ambiente conservado de Ianelli e do atual ateliê do avô Aquino. Carinhosamente chamada de Yoyo, a artista possui em seu entorno uma verdadeira constelação, na qual ela se desloca com graça e harmonia, sem perder em nada o lúdico próprio do mundo infantil. Eles sabem ali que aos pais e correlatos cabe-lhes, simplesmente, acompanhar a criança, mantendo-se um passo atrás do infante, de modo que é este/esta que determina seus quereres, os quais, mostra a experiência, nunca são absurdos ou demasiado arriscados.
Lembremos, por fim, Fernando Pessoa: “A criança que fui chora na estrada/ Deixei-a ali quando vim ser quem sou;/ Mas hoje, vendo que o que sou é nada,/ Quero buscar quem fui onde ficou”. A experiência de infância que Yolanda vem mostrando querer fazer, trazendo atrás de si sua galáxia afetivo-artística, vem sendo registrada em livros de arte que lhe permitirão, se e quando assim o desejar, retornar à própria infância para poder alicerçar-se e encontrar novos sentidos para seu próprio destino.
Para conhecer
Infância pode ser visitada até 3 de julho na Sala de Exposições do Theatro São Pedro, em Porto Alegre. Às 17h deste sábado (18/6), haverá uma conversa aberta sobre o tema com Antônio Holhfeldt, Cleonice Bourscheid e Mariana Ianelli, mãe de Yolanda, além da pequena artista, que autografará exemplares do livro Infância – Yoyo e as Pinturas (Ardotempo, 116 páginas), que conta com textos de Mariana e edição de Alfredo Aquino, avô de Yolanda, além de posfácio assinado por Paulo Rosa.