Por Eduardo Vieira da Cunha
Artista visual e docente no Programa de Pós-graduação em Artes Visuais da UFRGS
Nos tempos de escuridão, decapitação é tema presente. Metáfora mais atual do que nunca, tanto na história da arte quanto na política, pois nos propõe uma reflexão sobre o destino. O campo da arte nos ensina a expandir nossa percepção sobre as coisas. Por que a decapitação, ou a separação da cabeça do corpo, permanece tão misteriosa? Diante dessa perturbadora sublimação da morte, do corpo, do sofrimento e do sagrado, a psicanalista americana Julia Kristeva abre um campo de investigação e revisita Medusa, Sansão e Dalila e São João Batista até a guilhotina. Qualquer semelhança com o momento político da história ou atual não é mera coincidência.
O tema invoca um medo original, aquele da morte, que vem de longe. Se perder a cabeça é perder a razão, isso também significa, em arte, perder a visão, nosso sentido mais intelectualizado, que predomina em nossas relações políticas. Esse mal radical está ligado, paradoxalmente, ao sacrifício, à ressurreição, ao renascimento.
Julia Kristeva dedica um livro à decapitação: Visões Capitais (Visions Capitales – Ars et Rituels de la Décapitation). Ela tenta responder à pergunta sobre por que essa prática continua atraindo tanto mistério. A psicanalista faz um esforço de reconstituição da memória sobre o esquecimento. É uma história do estado de passagem entre a vida e a morte, o consciente e o inconsciente, a loucura e a razão, o corpo e a visão. A visão é, de certa forma, a negação do corpo. A escultura, diferentemente do cinema, da fotografia e da pintura, inscreve o corpo, induzindo um processo de percepção integral, pois ao corpo é permitido ver e sentir – apalpar, tocar. A escultura nos devolveria a consciência do corpo.
A decapitação é ainda praticada, ou foi, bem perto de nós, assim como no resto do mundo: quem não viu as imagens de fundamentalistas exibindo, diante das câmeras, medusas como triunfos de guerra, cabeças de suas vítimas? Ou as recentes operações policiais no Rio e a barbárie no presídio de Pedrinhas, no Maranhão, em 2014. Um deputado do Rio, ex-capitão do Exército, hoje bem conhecido, chegou a dizer à época:
– A única coisa boa do Maranhão é o presídio de Pedrinhas.
Em revoluções como a Federalista de 1893 no Rio Grande do Sul, a degola era praticada pelos dois lados. O Homo sapiens, que é um homem religioso, sempre cortou cabeças. Da Mesopotâmia aos Astecas, esse mal radical acompanha, ao longo da História, em uma estranha experiência imaginária.
O mito grego da imortal Hidra tinha corpo de dragão e várias cabeças de serpente, e, quando uma cabeça sua era cortada, outras duas surgiam. O remédio: cauterizar o tronco, como fez Iolau, a pedido de Hércules. O problema estaria mais embaixo. Chacinas, eliminações, revoluções, guerras: cortar cabeças seria a solução?
Arte e ficção tratam do tema de quando em quando. Em 1971, J.L.Borges é convidado à Columbia para conferência sobre o conto El Otro Duelo, escrito por ele um ano antes, cujos protagonistas são “dois gaúchos de Cerro Largo, Manuel Cardoso e Carmem Silveira” que em 1871 foram degoladores e degolados, “como era de costume aos perdedores das batalhas no Sul”.
Em Conrad, o personagem Kurtz, de Coração das Trevas, é a figura do civilizador europeu que participa os “ritos inomináveis” pela exploração econômica (o marfim) subjugando os nativos da África no período colonial. Ele chega a insinuar a possibilidade de extermínio dos diferentes dele, através da opressão, do terror, apresentando-a como a solução. O narrador da história, Marlow, alter ego de Conrad (o escritor vivera e trabalhara na África Central em um barco pelo Congo, em 1890) viajava em cruzada, como capitão de um vapor de uma companhia do imperialismo europeu na África, em nome do progresso. Seu destino: encontrar Kurtz, o burocrata colonial que se transformara em uma aterrorizante sombra e que, na solidão da selva, cometera atrocidades em nome da dominação.
A palavra “peste” aparece diversas vezes na narrativa, metaforicamente como uma solução à necessidade de “exterminar todos os negros para que aquele país se tornasse habitável”. A conquista aconteceria pelo terror: “Tomar as riquezas e as terras daqueles que têm a pele de outra cor”. Marlow observa a distância e, em detalhes, a casa de Kurtz é descrita. Em volta dela, havia uma cerca com cabeças cortadas: “Cabeças que pareciam dormir na ponta daquela estaca, e, com os lábios secos e murchos, revelar uma estreita linha branca dos dentes, também sorria, sorria continuamente de algum sonho interminável e engraçado que tivesse naquele sono eterno”. Lembremos os Yanomamis em outra selva.
Ironias da arte. A decapitação confronta o observador com o sagrado, com uma força imemorial, nessa inquietante estranheza entre a vida e a morte, com o último momento, um fim rápido e talvez indolor. Segundo a lenda antiga, a cabeça da medusa petrifica aqueles imprudentes que ousam-na olhar. Imagem ambígua, que nos lembra a morte, mas também a possibilidade de ressurreição. O político e o patético, a História e o drama, se misturam na decapitação.