A voz aguda avisa: "Tem de ajustar o foco". Depois, quase como em um travelling planejado por um hábil diretor de horror, a câmera foca o chão de concreto molhado até o cinza se transformar em vermelho, e um corpo sem cabeça entrar em quadro. A cena, registrada por detentos do Complexo Penitenciário de Pedrinhas, em São Luís do Maranhão, mostra o momento em que os vitoriosos de um motim comemoram a chacina de seus inimigos no último dia 17 de dezembro. A entrada da Polícia Militar maranhense no Presídio gerou, em represália, ordens das facções para ataques em plena rua a ônibus e delegacias.
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Com capacidade para 1,7 mil presos, Pedrinhas atualmente hospeda entre 2,2 e 2,5 mil, de acordo com diferentes fontes. É um presídio com um histórico brutal de rebeliões e chacinas - em novembro de 2010, morreram 18, e em outubro de 2013, nove foram assassinados, em uma cadeia dominada por três facções rivais. Desde janeiro de 2012, pelo menos seis dezenas de presos foram mortos. De acordo com relatório do Conselho Nacional de Justiça, o governo Roseana Sarney (PMDB) se mostrou "incapaz de apurar casos de corrupção e violência".
A divulgação do vídeo, pela TV Folha, provocou uma série de manifestações internacionais cobrando providências do Brasil para uma de suas grandes chagas sociais: a selvageria e o descontrole vigentes no sistema penitenciário. A Organização das Nações Unidas (ONU) cobrou oficialmente uma investigação do caso de Pedrinhas, e a Anistia Internacional criticou a "escalada de violência e a falta de soluções concretas".
- Que sistema penal é este que temos, baseado na total ineficácia e na mais completa injustiça? É o tipo de local em que você só alimenta os piores sentimentos de quem está lá dentro e a revolta de quem está aqui fora - diz a antropóloga Alba Zaluar, professora do Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).
Entrevista: Marcos Fuchs
Advogado de formação, Marcos Fuchs é diretor adjunto da entidade Conectas Direitos Humanos, uma organização não governamental de direitos humanos que vem acompanhando a situação dos presídios brasileiros. Desde o ano passado, integra o Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária (CNPC) do Ministério da Justiça, órgão responsável por monitorar o sistema carcerário.
Zero Hora - Que recado os acontecimentos em Pedrinhas dão à sociedade?
Marcos Fuchs - O recado é que o encarceramento em massa, a postura do Estado de prender e colocar mais presos do que comportam as unidades gera a perpetuação das quadrilhas que dominam o sistema. O Estado prende muito, prende mal e perde a capacidade de gerir o que se passa ali dentro.
ZH - O sistema carcerário é algo que a sociedade não se preocupa em conhecer, acompanhar ou mesmo se indignar?
Fuchs - Corretíssimo. Isso vai se refletir na sociedade. O poder público achando que o encarceramento em massa é a forma de resolver o problema. Não é. Você pode hoje trabalhar com penas alternativas, com justiça restaurativa, com serviços comunitários, tem um monte de coisas que se pode fazer, principalmente naqueles crimes de menor potencial ofensivo, como o furto de alimento, ou o sujeito que é viciado em crack e que acaba sendo preso como traficante. Se você prende sempre, você tem a superlotação do sistema. E diga-se passagem, aí mesmo em Porto Alegre você vai ter outro problema, que é o Presídio Central de Porto Alegre, outra unidade em situação caótica, também controlada por facções criminosas.
ZH - O crime vem se mostrando bastante eficiente em ocupar espaços que o Estado e a sociedade negligenciam, como as favelas e os presídios. O que se poderia fazer para retomar o espaço carcerário?
Fuchs - Eu não quero ser muito pessimista, mas estou envolvido, eu visito cadeias públicas, unidades prisionais aqui de São Paulo, agora no CNPC também vou começar a visitar Brasil afora, e o momento é delicado. Você vê um crescimento incrível da população carcerária. Eu não sei o que pode ser feito exatamente agora. Talvez, em um primeiro momento, você tenha que isolar essas facções. Você tem de conseguir colocar nessas unidades mais poder público, mais Estado, separar as alas pela gravidade dos crimes cometidos pelos presos, os que cometeram furtos simples, por exemplo, ficariam em uma área mais primária, e tentar restabelecer a ordem dentro das unidades.
ZH - Não apenas os apenados são negligenciados no atual sistema. As autoridades carcerárias não conseguem também administrar alguns direitos, como o de visita, um calvário para as próprias famílias dos presos. Onde está o nó? Por que a perda do direito de ir e vir incorre também nessa perda de outras mínimas questões de civilidade?
Fuchs - O modelo inteiro está errado. Vamos pegar São Paulo como exemplo, onde você tem CDPs (Centros de Detenção Provisória) que foram construídos para 740 presos e que chegam a ter 2,5 mil presos. Estou falando de 60 presos dormindo em uma mesma cela. E aí você pega isso no dia de visita, sábado e domingo, no qual as mães, as esposas, as irmãs, os familiares dos presos vão visitá-los. Você tem aquela fila quilométrica, debaixo de chuva, de sol, sem banheiro, sem a mínima condição de higiene, com a família submetida a uma revista vexatória. Obrigando crianças a mostrar e a abrir o ânus, senhoras a agachar, então você impõe um constrangimento também à família. A família também é proibida de saber a situação do preso, se está doente, se precisa de remédio. E por que não se resolve? Porque você tem uma fábrica de presos no Brasil, em prisões, como já bem disse o ministro José Eduardo Cardozo, medievais.
ZH - O que chama a atenção na violência das facções criminosas quando ela vem à tona é o grau de desumanidade envolvida. Como reconduzir os perpetradores desse tipo de barbárie ao comando do Estado?
Fuchs - É preciso mapear quem são esses líderes, onde estão, e aí você precisa de isolamento. Você precisa tirar esse pessoal do convívio dessas unidades. O Governo Federal já está oferecendo vagas nos presídios federais e você vai ter que aplicar um período de RDD (Regime Disciplinar Diferenciado), não tem outra alternativa. Não esse período de RDD que querem, também, porque um RDD é um período de seis meses, oito meses, se ficar anos também não funciona, é algo completamente biruta.
ZH - Alguns setores da sociedade dizem que a situação do sistema carcerário deve muito à leniência da própria política de Direitos Humanos. O que o senhor diria sobre isso?
Fuchs - A resposta é fácil. Você tem o número de que 70% dos presos que saem do sistema voltam a cometer crimes. Esse é um dado estarrecedor. O que ele aprendeu ali? Nada. Se você tivesse unidades menores, com controle do Estado, com professores da rede pública dando alfabetização, dando ensino básico e médio, se você tivesse biblioteca, esporte, lazer, um ambiente profissionalizante, com indústrias e fábricas absorvendo esse pessoal todo, tenho certeza de que teríamos um sistema prisional mais eficiente e humano.
ZH - O Brasil não tem prisão perpétua porque o conceito por trás das prisões brasileiras é o da ressocialização. Mas ao mesmo tempo, é um fato que ninguém ignora que a prisão não funciona como um ambiente de reinserção. É uma relação hipócrita da sociedade, fingir que não vê ou não se importar que o conceito bem-intencionado não é aplicado na prática?
Fuchs - Concordo plenamente. Vou adiante: você não tem como ressocializar um preso dentro do sistema atual. A não ser que você pegue uma ou outra unidade com números menores de presos, que esteja preparada, que tenha apoio ao preso, esporte e lazer. Ele não vai conseguir recolocação no mercado de trabalho, não vai ser reabsorvido e vai reincidir.
ZH - O Brasil não tem prisão perpétua porque o conceito por trás das prisões brasileiras é o da ressocialização. Mas ao mesmo tempo, é um fato que ninguém ignora que a prisão não funciona como um ambiente de reinserção. É uma relação hipócrita da sociedade, fingir que não vê ou não se importar que o conceito bem-intencionado não é aplicado na prática?
Fuchs - Concordo plenamente. Vou adiante: você não tem como ressocializar um preso dentro do sistema atual. A não ser que você pegue uma ou outra unidade com números menores de presos, que esteja preparada, que tenha apoio ao preso, esporte e lazer. Ele não vai conseguir recolocação no mercado de trabalho, não vai ser reabsorvido e vai reincidir.