Uma em cem mil. Esta é a probabilidade de se encontrar um doador de medula óssea compatível. A "uma" da enfermeira paulista Lilian Alves de Lima, 35 anos, é a empresária gaúcha Cris Suelen dos Santos, 39. Unidas pelo sangue há um ano e meio, as duas só se conheceram na última segunda-feira (7), em Gramado, na Serra.
– A gente pensa "quem será?", "ela ficou bem?", "será que a gente é parecida?". E olha, ela é igual a mim – sorri a doadora.
Lilian brinca que pensava ter recebido a medula de um homem:
– Começou a crescer pelo, igual barba – ri, explicando na sequência que a barba era reação aos remédios.
O período de 18 meses sem contato entre doador e receptor é o tempo exigido pelo Registro Nacional de Doadores Voluntários de Medula Óssea (Redome). Somente após esse tempo é possível solicitar informações pelos envolvidos no processo. O e-mail contendo os números de telefones chegou a ambas em janeiro de 2022, e logo as primeiras mensagens de WhatsApp foram trocadas.
– Salvei o número, fiquei olhando para o telefone, aí ela ficou online. Meu Deus, o que eu vou escrever? Eu pensei, porque nada que eu dissesse iria expressar minha emoção, minha gratidão – afirma Lilian.
Gramado foi uma escolha da família paulista, que desejava conhecer a bela cidade gaúcha, um dos destinos preferidos dos brasileiros. Depois do passeio, se refugiaram na casa de praia de Cris, no Litoral Norte. No pátio do amplo imóvel, à beira do Rio Tramandaí, as duas demonstram afinidade, repetem que estavam destinadas a terem seus caminhos cruzados e mantêm sintonia ao definir o atual grau de "parentesco":
– Irmãs de sangue – concluem, com abraços demorados.
Do diagnóstico à transfusão
Moradora de Fernandópolis, município de 70 mil habitantes no norte do Estado de São Paulo, Lilian foi diagnosticada com leucemia em 2019. Na época, sentia um cansaço extremo, febre e dores nas costas. Notou também a gengiva inchada e manchas avermelhadas na palma das mãos e na planta dos pés. Realizou um hemograma, no qual descobriu um descontrole das plaquetas (baixas) e leucócitos (elevados). De imediato foi transferida para outro hospital, em São José do Rio Preto.
– Eu não tinha força nem para conversar. Fui levada de ambulância. Eles não deixavam nem eu andar, pois já tinham a suspeita. E eu não acreditava. Sou acostumada a cuidar de pessoas, não estava preparada para ser cuidada. Sorte que tenho uma família incrível, que me apoiou – aponta para a mãe e para o marido.
Na quimioterapia, perdeu os pelos do corpo e cerca de 15 quilos até alcançar a remissão da doença. A necessidade de receber um transplante era reforçada pela equipe médica, pois havia alto risco de retorno do câncer. Próximo ao pescoço e no peito, ela exibe as marcas dos cateteres introduzidos durante o tratamento.
A mãe de Lilian, Matilde Alves da Silva de Lima, 60, deixou o emprego para cuidar da filha. Passou a conscientizar vizinhos, amigos e parentes para se registrarem nos hemocentros da região. Nenhum, no entanto, teve o percentual de compatibilidade encontrado na voluntária gaúcha, sete meses após entrar na fila.
– Somos uma nova família – agradece Matilde, técnica de enfermagem, inspiração para a profissão da filha.
Em 2020, Cris viajou a São Paulo, onde retirou as duas bolsas de sangue necessárias para a transfusão da medula óssea. As passagens e a hospedagem também foram bancadas pelo Sistema Único de Saúde (SUS), gestor do Redome no Brasil.
Sou acostumada a cuidar de pessoas, não estava preparada para ser cuidada. Sorte que tenho uma família incrível, que me apoiou.
LILIAN ALVES DE LIMA
Fez transplante de medula após receber diagnóstico de leucemia
Número de doadores em queda
À reportagem, Lilian e o marido, Sérgio Antônio de Lima, 42, disseram esperar que a história inspire mais pessoas. Reportagem de GZH apontou, em dezembro de 2021, que o Rio Grande do Sul reduziu índice de doadores ao percentual mais baixo da série histórica.
Referência na Capital, os bancos de sangue do Hospital de Clínicas (HCPA) sentem a queda, o que impacta cirurgias e procedimentos que necessitam transfusões. O sangue pode e deve ser doado no momento do cadastro para o sistema que mapeia a sequência da medula óssea.
– Tanto de medula quanto de sangue, reduziu o número de doadores na pandemia –complementa Alessandra Aparecida Paz, chefe do Serviço de Hematologia Clínica do HCPA.
A mais recente portaria do Ministério da Saúde restringiu o cadastro de doador de medula óssea a pessoas com no máximo 35 anos de idade.
A coleta da medula pode ser realizada por meio da veia de um dos braços, em um processo similar a hemodiálise. Em alguns casos, é necessário realizar cirurgia, com a retirada do líquido do osso do quadril.
Dados atualizados são indispensáveis
Constantemente, os dados do doador precisam ser atualizados, a cada mudança de endereço ou de números de contato – o que aconteceu com Cris, que se mudou de Porto Alegre para o Litoral e precisou informar os novos dados.
A empresária e o marido, Cristiano Oliveira Souza, 46, se tornaram doadores após uma reportagem do Jornal do Almoço, da RBS TV, em 2009, mostrar a história do menino, na fila de espera pelo transplante. Somente 11 anos depois, foram contatados. O atraso não reduz os laços formados. Apenas amplia a ponte aérea Rio Grande do Sul-São Paulo.