Em silêncio, Gustavo Erichsen, 43 anos, de Palmares do Sul, no Litoral Norte, olha atento para uma fina lâmina de madeira que, em breve, receberá uma camada de cola. O tempo passa e ele segue analisando e calculando a milimetragem da espessura antes de dar o próximo passo. Quase medita. Ritual parecido é feito a 190 quilômetros dali, em Garibaldi, na Serra, onde Júlio César Pedrassani, 54 anos, passa longas horas do dia explorando a própria criatividade ao unir, por exemplo, tocos de perobarosa e roxinho para dar-lhes um novo formato. Gustavo e Júlio fazem parte de um seleto grupo de artesãos brasileiros que se dedicam à arte de construir arcos de madeira, seja para prática como hobby ou para competições de tiro com arco.
Eles são chamados de bowyers. Fora do país, há milhares de bowyers, principalmente na Europa, na América do Norte e na Ásia. No Brasil, são cerca de dez profissionais atuando no ramo. No Estado, há apenas os dois, que são autodidatas, se conheceram pela internet e se tornaram amigos por conta da atividade.
Segundo o vice-presidente da Federação Gaúcha de Arco e Flecha (Fegaf) e atleta master da arquearia gaúcha Gustavo Toigo, os bowyers são os mestres artesãos construtores de arcos instintivos (fabricados sem auxílio de sistema ou mecanismo de pontaria).
— São artistas, conhecedores do assunto, que evoluem suas técnicas ao longo do tempo de aprendizagem. Desde o arco mais simples até o mais elaborado, aplicam seus conhecimentos na construção daquele produto, que têm a alma de seu construtor embarcado. Considero-os mantenedores de técnicas milenares, ajudando a manterem viva a prática e a disseminação do tiro com arco — comenta.
Toigo conhece o trabalho da dupla e, inclusive, já garantiu um produzido por Gustavo. A meta é, em breve, também ter um arco feito pelo morador de Garibaldi.
— Somos arqueiros de muita boa sorte, pois temos no nosso Estado dois artesãos de altíssima qualidade. Conheço o trabalho de ambos, cada um com seu estilo predominante, o Gustavo imprimindo em seus trabalhos detalhes finíssimos de marchetaria, tornando peças de rara beleza e funcionalidade, e o Júlio produzindo arcos de extrema confiabilidade e performance. Ambos mestres que não perdem em nada para os mestres de outros países. Há atletas campeões que utilizam os seus produtos — destaca Toigo, com orgulho.
Cada arco produzido pelo bowyer é considerado único. Desde as medidas de comprimento e abertura do equipamento, que precisam estar de acordo com a pessoa que o usará, até os detalhes do riser (empunhadora do arco). Gustavo, por exemplo, gosta de ornamentar a superfície usando a técnica da marchetaria. Júlio César procura trabalhar a essência da madeira, analisando os veios de cada peça para ressaltar sua nobreza e sua singularidade.
Tanto Gustavo quanto Júlio César aprenderam a arte da fabricação de arcos a partir de livros e de fóruns de discussão na internet. Hoje, atendem a clientes de diferentes partes do mundo. O trabalho que exercem exige muito mais do que a própria técnica. O processo é artesanal e leva dias para ser finalizado. Para se ter uma ideia, só a produção do riser necessita de até cinco etapas de colagem das lâminas. São 24 horas para a secagem de cada uma delas.
Não há uma data precisa para a descoberta do arco, mas há evidências arqueológicas, como pinturas em cavernas, comprovando sua utilização desde o período paleolítico. Para Toigo, o arco e flecha é uma das grandes invenções da humanidade.
— Todos os impérios se serviram desse instrumento para sua expansão. Notadamente, vemos que no continente asiático sua utilização foi a mais evoluída. Hoje, há arco e flecha sendo utilizado como instrumento de esporte e ainda também de caça entre os povos que não têm acesso a armas baseadas em pólvora — argumenta.
Toigo ressalta a importância da segurança com relação ao destino da flecha, que pode chegar a 280 quilômetros por hora. Para isso, há orientações específicas (leia ao final do texto) aos que desejam praticar o esporte, que tem diferentes modalidades. Hoje, no Rio Grande do Sul, há 320 arqueiros cadastrados na federação, sendo 30 ativos, participando dos campeonatos gaúcho e brasileiro.
"É quase uma meditação"
Gustavo Erichsen tinha o sonho de criança de ser Robin Hood. Nem tanto pelos atos controversos do lendário arqueiro inglês, e sim pela possibilidade de empunhar um arco. Gustavo não se tornou arqueiro profissional, mas fez da paixão infantil uma de suas atividades profissionais.
Quando decidiu que queria construir o próprio arco, buscou pela internet a ajuda de bowyers de outras partes do Brasil e do mundo. Ele lembra com carinho de um bowyer do Mato Grosso que lhe enviou a lâmina de uma madeira específica apenas para ter o conhecimento sobre ela. Em 2000, após ensinamentos recebidos em fóruns de interessados sobre o tema, fez o seu primeiro arco de madeira. Empregando técnicas de marcenaria aprendidas com os avós, fabricou uma peça rústica.
Diz que foram muitas tentativas com erros e muito material perdido até encontrar a técnica que lhe fez se tornar um bowyer profissional.
— O arco tem uma ação mecânica muito grande. Por isso, é preciso uma colagem perfeita e com temperatura em estufa correta para dar certo — conta Gustavo.
Ele sempre gostou de trabalhar com madeira, paixão cultivada também pelos antepassados que vieram da Alemanha e da Dinamarca. Foi com familiares que aprendeu a marchetaria, técnica que usa até hoje nas peças criadas no ateliê de madeira erguido nos fundos de casa. Em 2016, o bowyer de Palmares do Sul começou a produzir layouts mais elaborados com material importado, como a fina fibra alemã, de 0,8mm a 1mm, e a própria lâmina de madeira.
— O primeiro arco que fiz profissionalmente foi para um amigo. Ele viu o riser (empunhadora) que eu havia feito e me pediu um arco para ele. E deu certo — recorda.
Entusiasmado, Gustavo, que já tinha o ateliê de marceneiro com alguns equipamentos, como lixadeira e furadeira, produziu os moldes e construiu uma estufa rústica usada para reforçar a colagem do material.
Diferentemente de Júlio César, que fez da fabricação de arco e flecha sua principal fonte de renda, Gustavo é funcionário público. Por isso, se dedica à sua paixão apenas nos horários de folga e quando não está trabalhando como marceneiro, outro ofício desempenhada por ele.
Quando não estão nos seus ateliês, Gustavo e Júlio César se tornam arqueiros. Garantem que, assim como a arte de fabricar o arco, o esporte exige concentração, paciência, foco, postura corporal, precisão e uma dose de leveza. No Japão, por exemplo, praticar tiro com arco é uma arte marcial chamada Kyudo, com as primeiras referências históricas datadas do século 6.
Em 1948, o professor alemão de Filosofia Eugen Herrigel publicou o livro A Arte Cavalheiresca do Arqueiro Zen, no qual contou sobre suas experiências no estudo do Kyudo quando viveu no Japão na década de 1920. Na obra, ele afirma que, "de acordo com os mestres arqueiros de todos os tempos, a verdadeira compreensão dessa arte só é possível àqueles que dela se aproximam com o coração puro, despido de qualquer preocupação". A máxima poderia ser estendida também aos bowyers gaúchos, pois ambos admitem que, para se aprimorar na técnica da fabricação de arcos, é preciso, acima de tudo, estar aberto a novos conhecimentos, abraçar os que estão chegando à técnica e ter amor e dedicação pelo que fazem.
Por isso, Gustavo dá aos clientes o prazo de 45 dias para entregar o equipamento. Isso quando chove pouco: com o tempo úmido, ele evita mexer no material porque pode influenciar na colagem. Por envolver uma técnica única para cada artesão, ele considera complicado colocar outros funcionários para produzirem o mesmo trabalho:
— É uma arte única, muito exata e com um estilo próprio. Acho difícil ter funcionários para dar continuidade. Mas, se alguém tiver a mesma paixão por trabalhar com madeira, estou disposto a passar o conhecimento adiante para manter viva essa arte.
Hoje, ele fabrica quatro estilos de arco, com valores que começam em R$ 1,8 mil, e os clientes podem contribuir com sugestões na criação da peça exclusiva. Os compradores foram surgindo por indicação, nos próprios campeonatos, e há arqueiros de Mato Grosso, Amazonas, São Paulo, Paraná e do Rio de Janeiro. Um deles, por exemplo, já tem três arcos feitos pela Erichsen Bows. Gustavo teve propostas de países europeus para exportar os equipamentos. Porém, não aceitou por conta do tempo de garantia.
— Por não ser indestrutível, dou um ano de garantia. Só não exporto por conta disso, mas não descarto futuramente — deixa escapar.
Segundo Gustavo, o arco de madeira pode ter um riser com layout clássico e com arte própria. Já os arcos de alumínio e fibra de carbono são mais leves, mas mais comerciais, ou seja, padronizados, sem qualquer arte.
— Para ser um bowyer, a primeira coisa é gostar de trabalhar com madeira. E, sem aquela paixão pela arte e pela criatividade, não vai conseguir — sentencia.
Ele acrescenta que o trabalho tão singular é uma arte que exige, além da paixão, paciência, persistência e criatividade, pois o arco nunca é o mesmo e sempre terá um detalhe diferente. Falando manso enquanto monta mais um equipamento, acrescenta a necessidade de concentração e consciência corporal, características encontradas também no próprio arqueiro.
— Costumo dizer que é quase uma meditação. Tu tens que estar concentrado naquilo porque são muitos milímetros. Tem que ter um foco naquilo e uma mente limpa quando está trabalhando — ensina.
Em casa, junto com a esposa, Cristine Stroher, o bowyer reúne amigos para praticar tiro com arco nas folgas. De tão apaixonado pela própria obra, ele já tem cinco arcos. São como filhos.
— Já tenho um monte. Faço e digo: "Vou vender". Minha esposa me dá apoio para vendê-los, mas às vezes acaba ficando para mim. Já estou com a casa cheia de arcos — revela, aos risos.
"O arco é algo muito pessoal"
“Isso eu consigo fazer”, pensou Júlio César Pedrassani ao ver pela primeira vez um arco pendurado numa loja de caça e pesca. O ano era 2009, e o projetista e professor universitário aventurou-se na fabricação caseira dos primeiros equipamentos. Todos acabaram quebrando na primeira tentativa de uso.
Decidido a fabricar um que funcionasse, mergulhou em livros importados e traduzidos para ele pela filha, a professora de inglês e hoje arqueira Júlia. Com material nacional, que não era específico para a construção de arcos, Júlio César produziu os primeiros para os amigos mais próximos. Não havia perspectiva de tornar a atividade uma profissão. Porém, com os elogios vindos dos que recebiam os equipamentos, viu que poderia investir no negócio.
Em 2015, ao ter acesso à matéria-prima importada, começou a produzir em maior escala e se tornou um bowyer profissional. A virada oficial veio no ano seguinte, com a validação do trabalho desenvolvido pela JC3, nome da empresa em homenagem à família (Júlio César, a filha Júlia e a esposa, Leda).
A revista alemã Instinctive Archery, especializada em arcos, avaliou o modelo takedown do bowyer gaúcho num teste comparativo com fabricantes de outras partes do mundo. O modelo feito no Rio Grande do Sul alcançou as maiores notas em todas as exigências e foi campeão. Júlio César e a família ficaram sabendo da vitória quando um cliente da Europa os contatou para encomendar um arco.
Ele conheceu a JC3 por meio da revista. A partir daí, o artesão de Garibaldi alcançou o mercado internacional. Hoje, a JC3 tem modelos vendidos para Estados Unidos, Austrália, Alemanha, Holanda, Itália, Espanha, entre outros países.
— A construção de um arco é igual a fazer um bolo. A receita é mesma para todos, mas cada bowyer tem sua essência, seu segredinho, uma pitada diferente, um detalhe, uma temperatura. Isso tudo faz diferença — diz.
Em 2017 e 2018, Júlio César esteve na Itália participando da feira internacional de construtores de arcos tradicionais, onde pôde aprimorar a própria técnica e validar conhecimentos.
— Depois dessas viagens, passei a ter acesso a diferentes técnicas de fabricação. Também tive acesso a outros materiais para fazer a corda dos arcos — revela.
Júlio César costuma produzir em escala para ter equipamentos em estoque. Mas boa parte do material vendido é feito sob encomenda. Até por isso, a partir deste ano, o bowyer pretende tornar a empresa 100% por encomenda. A ideia é fazer cocriações com cada cliente – podendo escolher como será produzido o seu equipamento.
— O arco é algo muito pessoal. Existem particularidades para determiná-lo para cada arqueiro. Porque não existem duas madeiras iguais, os veios são diferentes. E eu procuro trabalhar a essência da madeira. Faço uma análise para ver onde aqueles veios vão ressaltar a nobreza da madeira. Chego a girar 10 vezes um pedaço de madeira antes de cortá-lo — explica Júlio César.
O investimento em equipamentos e processos padronizados permitiu a condição de executar construções com regularidade de performance, qualidade e acabamento de alto padrão. A meta de Júlio César era produzir equipamentos para arqueiros campeões, pois subir a um pódio é como uma gratificação. Atualmente, o modelo Inca, feito por ele, é tricampeão brasileiro e campeão sul-americano na Argentina e campeão na Nova Zelândia, na categoria de cada arqueiro.
— Hoje, a JC3 tem nome no mercado nacional e internacional pela amplitude da construção dos arcos. A gente brinca dizendo que o arco está para o arqueiro bem como a escova de dentes está para cada pessoa. Não usamos a escova de outro, né? Com o arco é a mesma coisa — comenta.
Mesmo com o reconhecimento internacional, 85% dos clientes são brasileiros – de São Paulo, Paraná, Rio de Janeiro.
— Estive num campeonato em São Paulo e encontrei três gerações participando, a avó, o filho e o neto. Foi bonito ver a parceria entre eles — recorda o bowyer gaúcho.
A empresa familiar funciona no distrito industrial de Garibaldi. Há uma sala com diferentes arcos e flechas produzidos por Júlio César, o salão do maquinário e um espaço para aulas. Afinal, ele se apaixonou pela arquearia e se tornou também instrutor de tiro com arco. A esposa é responsável pela divulgação do negócio, e a filha contribui com a comunicação em inglês.
Hoje, Júlio César produz 10 tipos de arcos, divididos nas categorias takedown (arco desmontável), one piece (arco inteiro) e two pieces (outro tipo desmontável). Cada peça custa a partir de R$ 1,8 mil. Para a produção, o bowyer de Garibaldi costuma importar bambu da Indonésia, resinas, fibras e fios de países europeus. Entre as madeiras mais usadas estão guajuvira, cabriúva e marfim, também importadas e com certificado de origem florestal.
Regras para o arqueiro
- Antes de iniciar a atividade, avalie as condições de segurança, identifique situações de risco e tome ações de prevenção para não se ferir.
- Certifique-se da ausência de pessoas no entorno do alvo. Devem estar sempre atrás da linha de tiro.
- Menores de idade precisam ser supervisionados por um adulto.
- Sempre utilize protetor de braço, dedeira ou luva.
- Verifique o estado de conservação das flechas antes do uso. Trincas e/ou rupturas podem causar acidentes severos nas mãos.
- Utilize flechas com spine (dureza) compatível com a potência do arco. Flechas moles podem romper-se no tiro e causar acidente na mão do arqueiro.
- Jamais aponte para pessoas ou para algo que não deseje acertar, pois pode ferir gravemente.
- Sempre que armar o arco para o tiro, aponte para um alvo seguro ou anteparo para reter as flechas.
- Nunca atire sem a flecha (tiro seco), pois isso pode ocasionar a ruptura da corda ou a quebra do arco, o que pode ferir o arqueiro.