Por Guilherme Mautone
Doutor em Filosofia, editor da revista Pilhia, coordenador do Colegiado de Artes Visuais da Sedac, docente convidado na Casamundi e no Atelier Livre de Porto Alegre
O caso recente envolvendo as acusações de racismo por parte de um aluno da Filosofia contra outro das Políticas Públicas, ambos vinculados à UFRGS, evidencia o quanto a universidade pública no Brasil não pode mais ser vista como um espaço isolado e alheio às dinâmicas sociais do nosso contexto. Até onde entendo, a universidade deve ser compreendida como uma instância capaz de reafirmar um pacto da sociedade civil com o princípio da formação de seus cidadãos, ampliando direitos sociais e aprimorando nossa democracia. Assim, jamais poderá haver espaço dentro dela para a emergência, a circulação e a permanência de ideias ou indivíduos que açoitem e, em longo prazo, até mesmo aniquilem os princípios constitucionais de uma sociedade plural, livre, justa e, sobretudo, solidária. Designar tais valores como inegociáveis significa enquadrar, pelo menos do ponto de vista filosófico, as próprias prerrogativas existenciais da universidade na moldura de uma institucionalidade sempre atenta à democracia e permeável às forças que dinamizam seu próprio aperfeiçoamento.
Li uma anedota sobre os fascistas esses dias que reproduzo aqui (o perfil do Twitter @anarcosaurus a escreveu). A história é a seguinte: diferentes espectros políticos – as personagens – são convidados para uma feijoada. O marxista leva o feijão, o social democrata, a farofa, o liberal leva a couve, o conservador, a laranja e os anarquistas, a cerveja. O fascista, que por alguma razão peculiar (e ainda a ser investigada...) foi também convidado, leva nada mais, nada menos do que um fétido rato morto. Ele chega, senta-se, atira o rato podre na mesa, ri com vileza do seu nefasto teatro e deixa todos chocados. Cumpriu-se, assim, sua missão. No ano passado, o fascista não fora convidado e ficou no portão, olhando de fora. Hoje ele entrou. Está na mesa, atirou nela o rato morto, ri de nós e cretinamente nos provoca: “Vai, experimenta um pedacinho”. A festa – como ironiza o meme da internet – virou um enterro.
Na anedota, o rato morto é metáfora do racismo, do machismo, da homofobia, do masculinismo misógino, do apartheid racial e antissemita. É a negação da história, do Holocausto, do colonialismo, do supremacismo, de sua sistematização; é o descrédito das suas testemunhas, seu silenciamento e a destruição de suas reputações. É a metáfora do autoritarismo, da eugenia, da censura e das tentativas de apagamento das pluralidades constitutivas da sociedade mediante a uniformização acachapante. É, sobretudo, a metáfora cretina do terror, da força e da violência como alternativas supostamente exclusivas para a democracia.
É isso, em suma, que o fascista traz à festa. Por essas razões ele não deve, sequer, passar do portão. Ele jamais acredita que a política é, antes de tudo, um esforço para consolidar e aprimorar a democracia, aprofundando os direitos sociais conquistados e inventando novos. O problema crucial no fato de ter entrado na feijoada é que sua mera presença leva a festa ao fim: sua missão ali é ameaçar e perverter a lógica plural do encontro político. Não se deve, jamais, deixá-lo entrar. Além de repugnante, ele exercerá sobre os outros um fascínio terrível com suas ideias atávicas e anacrônicas sobre um retorno orgânico à simplicidade social onde pluralidades se reduzem na unidade alienante e enganadora do “povo”. O fascismo contemporâneo tenta incansavelmente recredenciar seu ideário, sua visão de mundo e sua estética. Ademais, o rato poderá simplesmente ser atirado na mesa, como também ser servido em uma bela bandeja adornada por apetitosas guarnições. Daí porque também é preciso estar sempre atento à mensagem, ao seu mensageiro e ao meio que ele escolhe.
Novamente hoje no Brasil é preciso estar disposto a barrar o fascista no portão da casa. Para o debate político e para o aperfeiçoamento da democracia, ele não traz nenhuma contribuição real. Sua missão é entrar, rir-se de nós, subverter o jogo político e, se necessário, tomá-lo de assalto com o uso da violência. Se, contudo, ele já tiver entrado, será preciso coragem para expulsá-lo sem jamais deixá-lo sentar à mesa e, muito menos, falar. Pois é falando, sobretudo àqueles que porventura estejam desatentos às singularidades da política, que o fascista destilará suas ideias fascinantes e terríveis e fará emergir o ódio como o principal afeto político. Não devemos, enquanto sociedade, titubear diante do fascismo, do racismo e das defesas amplas da eugenia e do apartheid racial que, infelizmente, desencobriram-se, desavergonhadas, nesses últimos anos. Devemos condená-los, porque são moralmente inaceitáveis e são politicamente perversos.