Por Eduardo A. Vizer
Doutor em sociologia, professor catedrático emérito da Universidade de Buenos Aires (UBA)
Com o final patético da maioria das ditaduras latino-americanas na década de 1980, despertava em nós uma alegria inebriante para os espíritos livres. No mundo artístico, nas ciências e no mundo multifacetado do pensamento. Ressurgíamos como sujeitos cívicos ao reencontro com o social e o político; partícipes de coletivos e organizações políticas livres da sensação de haver sido expropriados por um poder que não representava o coletivo. Na Argentina, depois de uma guerra absurda com a Inglaterra, descobrimos que havíamos sido virtualmente assaltados e amordaçados pelas botas militares, despojados do direito a livre expressão, da opinião crítica e da discussão aberta. Ansiosos por construir uma nova etapa de liberdade e democracia, todos víamos se iniciar um processo de recuperação da palavra e da cultura, das artes e dos âmbitos de intercâmbio de ideias nas universidades e nas ruas. Todos falavam da democratização como um processo histórico e político. A palavra de ordem para uma infinidade de livros, publicações e meios de comunicação não era em si o substantivo democracia senão o verbo democratizar: construção de um processo pessoal e coletivo, um caminho a ser percorrido e construído diariamente por cada cidadão no âmbito da vida pública. Essa vivência fervorosa só pode ser vivida por quem tem consciência de haver sido criado com ela desde a infância e a juventude e de tê-la perdido quando uma ditadura a amordaçava silenciando nossas vozes, nossos escritos, nossas leituras preferidas.
Nosso pequeno fascista interior.
Um exitoso comentarista político argentino cunhou uma frase que estava na boca de todos: o “anão fascista” (como o “ovo da serpente” bergmaniano). Este seria um vírus que teria se instalado nos governos, nas escolas, nas universidades e no inconsciente de cada compatriota. Nos anos 1980, paralelamente ao julgamento político iniciado às juntas militares e às críticas aos responsáveis pela invasão das Ilhas Malvinas, foi se configurando um processo de autorreflexão, um julgamento cívico subjetivo e pessoal. Muitos se perguntavam até que ponto se havia cultivado nas relações da vida cotidiana e nas instituições um “anão fascista” que envenenava a vida social com atitudes violentas e machistas sobre a mulher, o racismo, o gênero e o poder. Curiosamente, esse processo de reflexão coletiva se espelhava no que se havia implantado no Japão e na Alemanha no pós-Guerra (a “desnazificação”). Nos países ocupados pela Rússia comunista, o processo foi permeado pela interpretação política e ideológica; nos países ocidentais, o processo foi vivenciado como um revisionismo por sua vez pessoal e coletivo, no qual a democracia ressurgia em formas inéditas: nos direitos humanos, na independência feminina e nos organismos sociais e políticos. Lamentavelmente, na América Latina a Guerra Fria e os “anos de chumbo” instalaram com sangue e fogo ditaduras militares, guerras civis e cerceamento das liberdades públicas e dos direitos humanos. Os anos 1980 representaram, então, um renascimento jubiloso dos processos de reconstrução das democracias.
Todo o mundo falava de uma democracia política reconquistada (como um fim em si mesmo), como um processo social e político lento e histórico de reconstrução, repensado objetiva e subjetivamente como prática cotidiana das relações sociais entre os cidadãos. Novos modos de vida, novos estilos de exercício do poder, novos papéis para a Justiça e para o Estado. Toda uma redefinição das relações não só políticas, como sociais e institucionais envoltas em um cotidiano de esperança, de alegria e fervor cidadão. Nesses anos, na Argentina, o presidente Alfonsín ganha as eleições presidenciais de 1983, circulando nas ruas das cidades com a Constituição em mãos, como quem levava uma Bíblia com as palavras de Deus, proclamando constantemente seu credo democrático às multidões fervorosas (Chile pós-Pinochet, ou Brasil pós-ditadura). A palavra de ordem em publicações, livros e meios de comunicação era “democratização”. Um processo que agora a ultradireita internacional pretende corroer ou destruir (Hungria, Polônia, Brasil).
Os comentaristas políticos que haviam apoiado a ditadura anos antes (1960/70), se voltaram ativamente ao processo de revisão crítica que surgia coletivamente na imprensa, nas discussões públicas e em todos os âmbitos e instituições. Nesses anos o jornalismo contribuiu para elevar a carga emocional e histórica que despertava da letargia dolorosa da Guerra das Malvinas e das atrocidades reveladas nos processos às Juntas Militares. Entendemos que a figura do “anão fascista” havia se instalado nas mentes menos lúcidas como um “outro eu”: autoritário, repressivo e prepotente, enrustido no inconsciente coletivo da vida cotidiana. Uma dúvida e um medo: até onde estamos sendo partícipes, consciente ou inconscientemente, de um processo de desconstrução do ideal democrático, de ideias e atitudes que promovem uma ameaça a nosso futuro?