Em razão da covid-19, os budistas seguem sem atividades presenciais na maior parte dos principais templos do Brasil, ao contrário de outras religiões, como evangélicos e católicos. No Rio Grande do Sul, mesmo com a liberação das missas e serviços religiosos, desde maio deste ano, a decisão dos centros budistas é permanecer com atendimentos apenas online até a vacinação ser concluída na população e os números da pandemia confirmarem queda definitiva. No Brasil, pelo menos metade dos cerca de 400 seguem a mesma medida.
Além da questão científica, o próprio budismo explicaria a decisão das lideranças, que não é centralizada: a do compromisso com o próximo.
— Não é só uma questão de cuidar de si, mas de cuidar do outro. Se você cuida de si, você está cuidando do outro. A pandemia também tem sido um momento de refletirmos sobre a impermanência e a imprevisibilidade das coisas — justifica a Lama Sherab Drolma, do Chagdud Gonpa Khadro Ling, templo localizado em Três Coroas e o mais visitado em terras gaúchas.
Em Três Coroas, a reabertura aos turistas ainda é uma incógnita, confirma a Lama. O Chagdud Gonpa Khadro Ling também é a sede sul-americana da rede de centros de budismo tibetano Vajrayana. Segundo Sherab, antes da pandemia de coronavírus, até 3 mil pessoas do Estado e de outras partes do Brasil e do mundo, costumavam percorrer a cada final de semana os prédios e os jardins da comunidade e ainda visitar a loja e a cafeteria locais.
Com a decisão de fechar permanentemente os portões, a renda mensal do templo, que vive de doações, caiu 60% no período e as 35 pessoas que moram na comunidade permanecem em isolamento, realizando trabalhos antes desempenhados por terceirizados – como atuar na cozinha comunitária e na jardinagem. Nem os vizinhos, frequentadores assíduos do templo, podem ingressar na área.
— Como somos um grande grupo e dividimos espaços, como o templo, para fazermos as práticas de meditação, e o refeitório e a cozinha, tivemos que restringir muito a ação das pessoas para evitarmos que elas ficassem doentes — explica Lama Sherab.
Ela reforça que a preocupação não é apenas com os moradores, mas com o público em geral. Os budistas de Três Coroas não querem ser vetores de transmissão da doença. Quando alguém precisa ir ao médico — uma das únicas situações em que se pode deixar as cercanias do templo —, ao retornar, o morador fica duas semanas em quarentena no quarto, sem circular pelos demais ambientes. O protocolo deu certo, pois ninguém ficou doente dentro da comunidade.
E mesmo com os alertas nas redes sociais e no site do templo de fechamento por tempo indeterminado, ainda há quem queira entrar no local, principalmente, nos finais de semana. Os mais desavisados vão até o portão principal na tentativa de convencer os moradores a liberarem a entrada.
Para manter o contato com os adeptos das práticas, o templo passou a desenvolver atividades online. Algumas, conta Lama Sherab, deverão continuar ocorrendo de forma virtual no pós-pandemia.
— No budismo, de um modo geral, a questão da presença, quando falamos de meditação e ensinamentos, é muito importante. Antes da pandemia, não tínhamos qualquer hábito online. No pós-pandemia, manteremos alguns eventos online porque nos habituamos — justifica.
A Lama explica que o Centro ainda não decidiu quando será reaberto à visitação pública. Havia a possibilidade da quebra do isolamento em outubro deste ano e o recomeço das atividades presenciais em março de 2022. Porém, médicos budistas que estão sendo ouvidos pela comunidade pediram, por conta das novas variantes, para que este prazo ainda não seja definido.
— Na reabertura, pensamos em fazer algo conjuntamente com a prefeitura de Três Coroas, convidando os produtores e artesãos locais, para realizarmos uma feira na área do templo. Ajudaríamos a cidade a promover o turismo — comenta Lama Sherab.
Para ela, o atual momento convida as pessoas a terem uma atitude altruísta porque a pandemia deixou mais explícito como há interdependência entre todas as coisas.
— Esta é uma experiência triste, que afeta muitos. Ao mesmo tempo, como budistas, podemos usar deste momento para tornar a nossa mente mais flexível e mais maleável diante da imprevisibilidade e do sofrimento. Então, em alguma medida, de acordo com as nossas circunstâncias, aqui podemos usar da experiência de pandemia para treinar a nossa mente também - completa.
“Ainda é cedo”
Por ser a aldeia e o centro de retiro mais antigo da rede do Centro de Estudos Budistas Bodisatva (CEBB), o CEBB Caminho do Meio, localizado em Viamão, sempre foi um dos mais procurados pelos praticantes para aprofundar os estudos sobre budismo e a prática de meditação de forma presencial. Mas a pandemia mudou esta rotina. Ao acessar o site da comunidade, o visitante se depara com a seguinte mensagem escrita em vermelho "ATENÇÃO: Todas as vivências estão suspensas por tempo indeterminado, como prevenção no contexto da pandemia do COVID-19. Esperamos que todos fiquem bem."
Segundo o tutor e vice-presidente do CEBB, Henrique Lemes, não há data prevista para o retorno dos eventos presenciais, como retiros e estudos.
— Estamos sempre em contato com médicos e profissionais ligados à ciência que são budistas. Todos são unânimes em recomendar que ainda é cedo para atividades presenciais no Centro. Ainda não temos uma sensação de segurança para fazermos de uma forma cuidadosa com as pessoas. É um ponto de vista baseado na própria ciência e no que o próprio budismo nos convida a olhar — justifica.
Segundo Lemes, na visão do budismo, a prática espiritual só faz sentido na relação com as pessoas. Ela não é vista como unicamente pessoal, como se fosse algo que nos retiraria do mundo e nos colocaria numa outra dimensão. O próprio sentido de desenvolvermos um interesse em conhecer melhor as nossas emoções, o mundo como nos relacionamos e vivemos só faz sentido nas relações que já temos.
— O budismo tem no aspecto da compaixão a base da prática da meditação. Ainda que não se saiba se podemos estar infectado ou não, talvez, não fazer o movimento de reunir as pessoas pode ser o mais adequado — explica o vice-presidente.
Antes da pandemia, os eventos presenciais no CEBB Caminho do Meio chegavam a reunir 250 pessoas por final de semana e eram a principal fonte financeira do local. Com o fechamento do Centro, em março de 2020, as atividades passaram a ocorrer apenas de forma virtual.
— Ao mesmo tempo que paramos de forma presencial, as despesas com operação, manutenção e organização caíram também. Como os gastos com a energia elétrica, por exemplo. Neste sentido, as coisas estão fluindo porque permanecemos fazendo muitas atividades online — explica Lemes.
Quem participa das palestras e dos retiros nas plataformas virtuais é convidado a fazer uma doação espontânea. Ainda assim, o vice-presidente lembra que muitos - sem citar números exatos - dos cerca de 60 centros urbanos do CEBB espalhados pelo Brasil acabaram entregando os espaços alugados e permanecendo apenas com salas online até a pandemia ser controlada no país.
— Num certo sentido, para o praticante budista, se olharmos de forma restrita à prática, ficar em casa não é necessariamente um problema porque a pessoa tem mais tempo para meditar, para estudar, para contemplar a própria mente e se observar com mais tempo. Não que isso tenha sido fácil. Mas o budismo se propõe a oferecer ferramentas para que possamos, de alguma maneira, ficarmos conosco mesmo — conta.
A rotina foi alterada até mesmo para quem vive na aldeia, localizada nos 16 hectares do CEBB Caminho do Meio. São cerca de 180 pessoas em 80 casas. Atividades comunitárias, como o refeitório coletivo e as práticas coletivas, foram interrompidas. A cozinha segue fechada e os moradores começaram a cozinhar nas suas próprias casas. As práticas, antes feitas no templo do CEBB, agora são realizadas de forma online.
— Se pudermos manter de forma mais segura, manteremos. Ainda precisamos pensar como será este retorno, pois não chegamos a estabelecer protocolos. Olhando a realidade hoje, (ainda) não parece fazer sentido reabrir (o Centro). O número de vacinados no Brasil não é alto, a transmissão segue alta e o número de mortes que temos agora no ano passado nos deixava de cabelos em pé. Os nossos parâmetros são muito surreais — justifica Lemes.
Na comunidade CEBB Caminho do Meio, apenas a escola de Educação Infantil e Ensino Fundamental, de inspiração budista e mantida pelo Instituto Caminho do Meio, retornou às atividades presenciais neste semestre, com os devidos protocolos de segurança contra a covid-19.
“Queda de 90% nas doações”
Ao contrário dos outros dois templos visitados pela reportagem de ZH, a Associação Via Zen, que mantém dois centros de práticas budistas, em Porto Alegre e na zona rural de Viamão, tem como principal fonte de recursos as doações espontâneas ou estimuladas por meio de campanhas específicas para manutenção das sedes urbana e rural e das despesas administrativas.
Segundo a presidente, Adriana Nunes Wolffenbuttel, a Yushi, os eventos presenciais, que chegavam a reunir até 100 praticantes de diferentes partes do Brasil e do Uruguai, ajudavam a incrementar estas doações. Porém, desde o início da pandemia, os retiros Zazenkai (1 dia) e Sesshin (vários dias) se tornaram apenas virtuais, assim como a prática da meditação zen, denominada Zazen. Com isso, a queda nas doações chegou a 90%.
Apesar da atual situação, Adriana ressalta que as mudanças a partir da pandemia foram além da agenda virtual.
— Possibilitou que praticantes do Zen Budismo e associados, que moram em várias regiões do Brasil e em outros países, passassem a estar rotineiramente presentes nas atividades de meditação e administrativas do Via Zen, em cargos da diretoria, nos conselhos e nas comissões — explica Adriana.
Fundado há 25 anos por um grupo de praticantes do budismo, a Via Zen mantém o centro de práticas a 14km da área central de Viamão, num espaço repleto de verde denominado Montanha Grande Buda. O nome é uma referência à escultura de nove metros de altura instalada no local, que antes da pandemia atraía a curiosidade também de não-praticantes do budismo, como grupos de ciclistas que passavam pela região e aproveitavam para fotografar o Buda. Até por isso, mesmo sem data prevista para reabertura ao público, a Via Zen tem a intenção de iniciar agendamentos para visitas apenas à área livre.
— Seria sem acesso a áreas internas e somente para poucas pessoas, devidamente protegidas com máscaras, cada uma com o seu copo para água e o seu lanche, mantendo o distanciamento e com uso do álcool gel — acrescenta Adriana.
Sobre o reinício dos retiros e das atividades presenciais específicas aos praticantes, a entidade tem dezembro como meta inicial. Adriana faz questão de reforçar que, certamente, será mantido um sistema misto de atendimento: virtual e presencial.
— Aumentaremos o espaço entre as almofadas de meditação zen, as Zafu, manteremos o uso das máscaras e as janelas e portas abertas e teremos álcool gel à disposição — finaliza.