Tudo já foi investigado, documentado e enviado ao Vaticano, onde corre o processo para reconhecer a madre Bárbara Maix (1818-1873) como santa — se confirmado, a primeira a viver no Rio Grande do Sul. Em Roma, um milagre atribuído a ela será analisado por uma equipe formada por médicos e teólogos, etapa acompanhada de perto pela Irmã Gentila Richetti, postulante da canonização e ligada à congregação fundada pela religiosa, das Irmãs do Imaculado Coração de Maria.
Gentila chegou à Itália em 29 de junho e entregou à Santa Sé o pedido de abertura do processo de canonização. Por e-mail, ela respondeu a perguntas sobre as etapas necessárias para que o Vaticano reconheça, ou não, a cura que pode ter sido provocada por Bárbara Maix, em 2018: uma mulher vítima de queimaduras na comunidade de Santa Lúcia do Piaí, distrito de Caxias do Sul, na Serra, conseguiu se recuperar mediante orações à beata, que havia feito um milagre no mesmo local, décadas antes.
Detalhes sobre os fatos extraordinários ligados à religiosa nascida em Viena, na Áustria, também foram respondidos, por telefone, pela Irmã Iraídes Dallagnol, que é vice-postulante do pedido de canonização.
Em perguntas e respostas, entenda o passo a passo da canonização de Bárbara Maix:
Qual a diferença de beatificação e canonização?
Irmã Iraídes Dallagnol - Quando o processo de beatificação é instaurado, ele exige um fato extraordinário que a ciência não explica. Foi reconhecido esse acontecimento do menino, então a Bárbara Maix recebeu a graça da beatificação e foi considerada "bem-aventurada". Em italiano, chamam de beata. Isso acontece em nível regional, o reconhecimento se dá no espaço da congregação à qual a beata está ligada. Ela pode ter sua imagem venerada, proclamada, difundida. A canonização entra no cânone dos santos, no Vaticano. Para a canonização, é necessário um segundo milagre. Com a canonização, ela vira santa, reconhecida pela Igreja Católica em nível mundial. Todos os países, línguas, povos e nações podem reconhecê-la, proclamá-la e invocá-la.
Os dois milagres são ligados a queimaduras. Isso costuma acontecer entre os santos, ter milagres parecidos?
Irmã Iraídes Dallagnol - Costuma, sim, desde que o santo seja invocado. Não significa que a Bárbara Maix seja a santa dos queimados, até porque já existe, é São Lourenço, entre outros.
Quais são as característica de Bárbara Maix?
Irmã Iraídes Dallagnol - Bárbara é associada muito a esse lado da compaixão, da misericórdia, da solidariedade. A única herança que ela deixou para a congregação — nada de material — foi o perdão. Toda a vida de Bárbara foi dedicada ao cuidado dos pobres, dos necessitados, dos doentes. Ela passou por três epidemias: em Viena, onde nasceu, passou pela da febre do tifo. Ela mesma sofreu as consequências disso, que a foi a asma, ela teve dificuldades na respiração. Ela acolhia jovens que vinham do interior para estudar em Viena e não conseguiam hospedagem ou trabalhavam e caíam na prostituição. Bárbara fundou uma pensão para acolher essas jovens e dar abrigo. Ela era formada em moda, era modista — hoje a gente fala estilista —, então ensinava a essas jovens a costura, o bordado, a fazer chapéus, tudo o que era moda da época. Vindo ao Brasil, em 1848, a realidade ficou diferente. Aqui, a realidade era a da escravidão. Ela passou pela epidemia da cólera, da febre amarela, viveu o tempo da Guerra do Paraguai. Muitas crianças ficavam órfãs de homens que iam para a guerra, muita criança pobre. Ela continuou com a questão da educação, da ação social, do acolhimento. Ela queria que todas as crianças fossem boas cristãs, boas cidadãs. Ela é uma das pioneiras da ação social no Rio Grande do Sul. Era uma mulher de coragem, do altruísmo, de capacidade administrativa incrível.
Quando ela veio para Porto Alegre e como foi sua passagem por aqui?
Irmã Iraídes Dallagnol - Em 1856. Ela veio a convite da Santa Casa de Misericórdia para cuidar das crianças expostas, aquelas que eram deixadas na porta da roda, entregues para adoção. Ela recebia crianças de cinco a 13 anos. Mas, na Santa Casa, não tinha espaço suficiente para educação. Então foi alugada uma casa, na então chamada Rua da Igreja, que hoje é a Duque de Caxias, perto da Assembleia Legislativa, e lá ela começou a residir com outras irmãs e passou a atender as crianças da Santa Casa. Quando a casa ficou velha e precisou de reformas, o dono pediu de volta. E aí surge o Asilo Providência, na Rua da Ponte, que hoje é a Riachuelo, no começo de 1863. Ela ficou em Porto Alegre até 1870, voltou para o Rio e, em 1873, faleceu. Os restos mortais estão em Porto Alegre, no Santuário São Rafael, ao lado do antigo Asilo Providência.
A Bárbara conhecia o distrito de Santa Lúcia do Piaí, onde os milagres ocorreram? Ela deve ser muito cultuada naquele local.
Irmã Iraídes Dallagnol - Não, nada. O que ela conheceu no Rio Grande do Sul foi Porto Alegre e Pelotas, porque em Pelotas também tinha uma comunidade no Asilo Nossa Senhora da Conceição. Em Santa Lúcia do Piaí, a congregação teve um pequeno hospital, aqueles hospitais de Interior. A família do Onorino Ecker, o pequeno que foi queimado, morava na localidade de Macaburio, que pertence a Santa Lúcia. Era uma família pobre, não tinham fogão a lenha, era fogo de chão, com panela pendurada, e ali ferviam a água e faziam a comida. Numa manhã, era 1944, os pais foram cuidar das vacas, tirar leite, o Onorino foi empurrado, se agarrou na corrente de ferro, a panela com água fervendo caiu sobre ele e ele caiu no fogo. Quando ele sofreu a queimadura, foi levado para o hospital em Santa Lúcia, e lá estavam nossas irmãs. A Irmã Dulcídia Granzotto tomou a iniciativa, porque o médico desenganou, disse que não havia mais nada o que fazer, porque o menino estava muito queimado e em estado de convulsão. Contam histórias que caíam as unhas, a pele dele, e o médico disse que o menino não ia sobreviver. Irmã Dulcídia tomou a iniciativa de rezar para Bárbara Maix, pediu que a família rezasse, que a comunidade rezasse, e em 14 dias o Onorino saiu do hospital perfeito, totalmente recuperado.
E o segundo milagre?
Irmã Iraídes Dallagnol - Foi agora em 2018. O nome da mulher é Noeli Dall'Agnol Camelo, e também aconteceu na localidade de Macaburio. Ela estava fazendo sabão, é um processo que precisa derreter a gordura no fogo. Na hora em que ela foi utilizar álcool, soda e gordura junto, explodiu, pegou fogo. Ela foi toda tomada pelo fogo, rosto, braço, da cintura pra cima, toda queimada. Foi muito feio. Teve parada cardíaca, os médicos não davam esperança, ficou entubada, na UTI. O povo de Santa Lúcia do Piaí lembrou do Onorino e suplicaram à Bem-Aventurada Bárbara Maix. Em 15 dias, a Noeli saiu do hospital refeita. Ela está viva ainda, tem 50 e poucos anos.
Como foi o processo de investigar esse segundo milagre? Como se dá essa investigação?
Irmã Iraídes Dallagnol - Foi comunicado para a Congregação das Irmãs do Imaculado Coração de Maria que existia esse fato extraordinário. Começamos a saber o que foi, o que aconteceu, como aconteceu, e vimos que poderia ser um milagre. A Congregação pediu para a Diocese de Caxias do Sul acompanhar o caso, e foi instaurado um tribunal eclesiástico. Esse tribunal eclesiástico teve a função de tomar conhecimento do fato e entrevistar 20 pessoas sobre o fato, ouvir o que elas tinham para dizer. Mas a Noeli, mesmo estando curada, teve que passar por avaliações médicas, dermatológicas. Eram três sacerdotes e uma médica dermatologista que compunham o tribunal eclesiástico. Eu fui a responsável por compilar tudo, era chamada de copista. No processo de investigar, vai todo o prontuário médico da Noeli, o que foi feito no hospital. Depois, o tribunal eclesiástico deu o parecer, sigiloso, e tudo isso consta no processo enviado a Roma em 2019.
Quais são os passos agora para Bárbara Maix virar santa?
Irmã Iraídes Dallagnol - A Congregação nomeou a Irmã Gentila como postuladora da causa, significa que ela é a responsável por encaminhar e acompanhar o processo na Itália. Ela está hospedada na nossa comunidade de irmãs em Roma. Quando ela precisa ir até o Vaticano, vai. Ela já fez o pedido de abertura do processo de avaliação do milagre para o prefeito da Congregação das Causas dos Santos. É Roma que vai dizer se realmente foi milagre ou não foi. Sendo confirmado milagre, Bárbara é reconhecida santa. Não sendo, teremos que esperar outro fato extraordinário associado a ela.
Por que é importante ir ao Vaticano acompanhar o processo?
Irmã Gentila Richetti - Estar em Roma é uma exigência porque eu, como postuladora, devo estar em permanente contato com a Congregação das Causas dos Santos, seguir as orientações e acompanhar o prosseguimento da causa. Em 2019, ao comemorar os 50 anos da Congregação das Causas dos Santos, o papa Francisco, falando aos 360 postuladores, exaltou a "seriedade e perícia no estudo das fontes processuais e documentais" e a importância da objetividade e do rigor nos exames dos candidatos. Para o papa Francisco, o milagre é o "dedo de Deus".
Como é o processo de análise no Vaticano? Quem faz parte da comissão que analisa os presumidos milagres?
Irmã Gentila Richetti - Uma vez trazida a Roma a documentação sobre o presumido milagre, é designado um relator que orienta o postulador na preparação do dossiê, onde são sintetizadas as provas reunidas na diocese a fim de reconstruir o fato com segurança. Como se trata de uma cura considerada cientificamente inexplicável, ela é julgada como tal por uma comissão médica composta por especialistas, tanto crentes como não crentes. Também se pronunciam sobre o milagre os consultores teólogos, à luz do Evangelho e dos ensinamentos da Igreja, e, depois, os cardeais e bispos da Congregação das Causas dos Santos. Por fim, o Papa define o fato prodigioso, como autêntico milagre, determina e dispõe a promulgação do decreto.
Vão analisar os dois milagres associados a Madre Bárbara?
Irmã Gentila Richetti - Para que Madre Bárbara seja declarada santa, deve ser atribuída a ela a intercessão eficaz do segundo milagre, que ocorreu após a beatificação. Portanto, para a canonização dela é examinada somente a documentação do fato ocorrido em 2018.
Esse processo deve levar quanto tempo?
Irmã Gentila Richetti - Cada processo tem seu próprio cronograma: o tempo dos médicos, porque se trata de examinar um possível milagre de cura, e o tempo dos teólogos. Se forem positivas, passa para a sessão ordinária dos cardeais e bispos. Terminado todo esse processo, o prefeito da Congregação das Causas dos Santos submete a aprovação e palavra final ao Papa. As causas são realmente muitas, provenientes de todos os continentes. O grande número de beatificações e canonizações é um indicador da vitalidade da Igreja, em cada época.
Quais as chances de termos a primeira santa a ter vivido no Rio Grande do Sul?
Irmã Gentila Richetti - A chance da canonização de Madre Bárbara depende só do reconhecimento do presumido milagre, cuja documentação se encontra na Congregação das Causas dos Santos, para ser estudada.
É a primeira vez que o Rio Grande do Sul é palco de milagres?
Irmã Gentila Richetti - Para a canonização, se for confirmado, o caso da intercessão de Madre Bárbara Maix será o primeiro. Para a beatificação, conhecemos também o caso da intercessão do Padre João Schiavo, em Caxias do Sul. Para a beatificação do Padre Manoel Gómez Gonzáles e do coroinha Adílio Daronch, de Três Passos, não foi necessário um processo sobre milagre porque são mártires.