Aos quatro anos, quando posicionou-se para uma foto à frente do pai, Hermes da Silva Dias, e de uma máquina artesanal capaz de esmagar ao mesmo tempo inúmeros cachos de uvas, o hoje universitário Gabriel da Costa Dias, 25 anos, não imaginava que o guri sempre disposto a separar as folhas da fruta nas caixas se tornaria o responsável pela área de marketing da agroindústria da família produtora da única jeropiga registrada no Brasil, desde o ano passado, pelo Instituto Nacional de Propriedade Industrial (Inpi). Tradicional em Portugal, principalmente nas regiões centro e norte daquele país, o vinho licoroso é há 18 anos a bebida símbolo de Rio Grande, no litoral sul gaúcho, e também considerado patrimônio imaterial do município. Reconhecimentos para o esforço da família de Gabriel e Hermes, que há mais de um século acredita no potencial da jeropiga, que, em Rio Grande, ganhou o rótulo Tradição da Ilha.
No início do século 20, o tataravô de Hermes, o português José de Oliveira e Silva, já produzia o vinho licoroso na Ilha dos Marinheiros, em Rio Grande. A região era conhecida pela plantação de uvas, e as famílias aproveitavam a fruta para fazer alguns litros da bebida e distribuí-la a familiares e a amigos, que a consumiam, principalmente, durante o inverno. Casada com Hermes há 31 anos, a agricultura Rosangela Costa Dias, 54 anos, também descendente de portugueses produtores de jeropiga, recorda que na infância a bebida alcoólica era misturada à gemada e à canela e transformada numa espécie de vitamina, consumida diariamente também pelas crianças. Um costume deixado no passado.
Com o passar dos anos, as famílias da Ilha dos Marinheiros foram deixando a tradição de lado. Entre os motivos estão a decadência da própria produção local e o encarecimento do processo.
Foi Hermes, atualmente também com 54 anos, quem, por conta da necessidade, tornou a bebida comercial no sul do Estado. Pequeno produtor de hortifrutigranjeiros na própria ilha, vendendo o que produzia em feiras da cidade, ele decidiu diversificar numa época em que os preços estavam despencando. Com os dois filhos ainda pequenos e vendo a vida encarecer, Hermes tomou a decisão. Apoiado por Rosangela, levou à feira do produtor, no balneário do Cassino, algumas garrafas do produto feito para a família. Até então, eles produziam anualmente 50 litros de jeropiga e 200 litros de vinho para consumir em casa e presentear amigos.
– Teve grande aceitação já na primeira feira, e ainda tínhamos uma vantagem: se a jeropiga sobrasse de uma semana para a outra, não iria fora, como ocorria com as hortaliças. Pelo contrário, quanto mais tempo, melhor. Ano a ano, começamos a aumentar a produção – conta.
Conforme registrado pela dissertação de mestrado da pesquisadora Helissa Renata Gründemann, defendida na Universidade Federal de Pelotas (UFPel), um projeto do Programa de Extensão Comunidades da Universidade Federal do Rio Grande (Furg) auxiliou a família na produção de um documento justificando a patrimonialização da bebida. Na época, o Ministério da Agricultura solicitou à família que se enquadrasse nas normas de produção industrial de bebida alcoólica no Brasil. Essa situação, porém, significaria a imposição de taxações altas para a agroindústria familiar e uma exigência de adequações nas instalações que levariam os Costa Dias à falência. Diante da situação e a visão de que a bebida é artesanal e um bem cultural da cidade, foi discutido com a prefeitura de Rio Grande a criação de uma lei que registrasse a produção como patrimônio cultural imaterial local. Os membros do projeto, então, redigiram o documento, apresentando os elementos históricos e culturais da produção. A lei municipal foi aprovada em dois meses, garantindo a referência cultural do município.
A jeropiga é o suco mais nobre da uva, extraído da primeira parte da fruta, explica o produtor:
– A uva começa a ser moída para o vinho ser produzido. Quando a uva é quebrada, recolhe-se o primeiro líquido quando está começando a fermentar. Para transformá-lo em jeropiga, é separada e colocada em pipas, com 17% de álcool. O produto fica reservado por, no mínimo, três meses. Esse período é para a decantação, quando a borra vai sendo separada e ficando no fundo das pipas.
Hermes comenta que, na época dos barris de madeira, usava-se mais álcool, em torno de 21%, porque a madeira o absorvia. Atualmente, com o uso de pipas de polipropileno, não há necessidade de aumentar a gradação. Se a bebida continuar reservada no inverno, ressalta o produtor, a apresentação se tornará melhor, podendo ser consumida gelada, no verão, ou na temperatura ambiente, no inverno. E o restante da uva, depois de extraído o primeiro suco? Segue no processo de fermentação, para se tornar vinho. Na casa dos Costa Dias, a uva ainda vira suco natural, assim como manga, morango e abacaxi, comercializados nas feiras locais.
Estritamente familiar, a jeropiga Tradição da Ilha é mantida apenas por Hermes, Rosangela e Gabriel. O filho mais velho do casal, o engenheiro de alimentos Samuel Dias, 30 anos, mora em Santa Catarina e sempre que retorna à ilha, especialmente no verão, auxilia no trabalho. Além de cuidarem dos parreirais, da compra de uva vinda da Serra e da produção praticamente artesanal das bebidas, eles ainda participam semanalmente de uma feira no Cassino e de grandes eventos da região, como a Fenadoce, em Pelotas, e a Festa do Mar, em Rio Grande. A família também mantém um espaço de vendas na propriedade, onde recebe visitantes e turistas. E eles vêm de todo o Estado, de outras partes do país e até de Portugal.
Com o passar dos anos, os Costa Dias foram aperfeiçoando a produção. Se até os anos 1990 a uva ainda era esmagada com os próprios pés, hoje máquinas potentes fazem o serviço. Mas a família faz questão de manter, entre equipamentos novos, como as pipas de prolipropileno, peças consideradas relíquias históricas e que contam a tradição da região, como uma prensa centenária utilizada no processo do vinho e ainda em uso.
Na área de 1,5 hectare da família, os parreirais de uva bordô dividem espaço com canteiros de flores, também comercializadas. Gabriel e Hermes garantem que todo o tratamento ocorre sem defensivos químicos. Os dois são os responsáveis por medirem a doçura da fruta com um refratômetro de brix (unidade de medida da concentração de açúcar) antes da colheita. Um temor de pai e filho são os temporais de setembro, justo a época de floração das parreiras.
Produzida no verão, entre janeiro e março, durante a safra de uva no Estado, a jeropiga representa cerca de 40% de toda a produção de vinho da Tradição da Ilha, que gira em torno de 15 mil litros ao ano. Como não há produção da fruta suficiente na propriedade, a família compra uva de fornecedores da região serrana. São quatro toneladas anuais, basicamente de uva bordô, porém, neste ano, a jeropiga também ganhou uma seleção especial com as uvas carmen, mais doce, e niágara, branca. Iniciativa de Gabriel, para diversificar a marca.
Desde a conquista do registro oficial da bebida, em abril passado, após dois anos reunindo documentos com a ajuda da Emater, a família criou uma nova função dentro da empresa. Gabriel, apesar de estudar Engenharia Mecânica, assumiu a divulgação da marca nas redes sociais. Criativo, ele uniu os brasões das famílias portuguesas Costa e Dias e montou um logotipo.
Cada garrafa de 750ml custa R$ 29. Embora divulgada com seu nome correto e reconhecida oficialmente desde abril, muitos ainda chegam à propriedade da família procurando pela “jurupiga”. Os próprios produtores às vezes se equivocam com o nome, depois de tantos anos identificando-a pela alcunha popular.
Para Hermes, por ser adocicada, a bebida é um aperitivo. Ele não a recomenda como acompanhamento de refeições. Diz que pode ser saboreada como entrada ou finalização, acompanhando a sobremesa. A equipe de GZH experimentou um cálice ao visitar a Ilha dos Marinheiros, neste mês de janeiro. Já no primeiro gole é possível sentir a nobreza do líquido levemente adocicado, que desce como veludo e cujo teor alcoólico passa praticamente despercebido. Quem não tem o costume de ingerir álcool precisa tomar cuidado, como esta repórter que vos escreve. Só se percebe a força da jeropiga quando levanta-se da cadeira, depois de alguns goles.
– Quem não conhece a jeropiga nunca terá a exata ideia de como ela é. Por isso, a gente sempre oferece uma provinha aos que nos visitam, mesmo que eles optem por não comprá-la. Assim, seguimos divulgando o nosso produto – diz Hermes.
Registrados como agroindústria familiar, os Costa Dias já almejam ampliar a produção. E será Gabriel, prestes a formar-se engenheiro, o responsável por manter a tradição. Entusiasmado com as novas possibilidades a partir da oficialização da pequena empresa, o jovem garante estar pronto para levar adiante o legado histórico da família.