Os passageiros que embarcam no banco traseiro do Onix cinza não viajam desacompanhados, mesmo estando sozinhos. Podem deparar com Marcel Proust, Gabriel García Márquez, Luis Fernando Verissimo, Mario Vargas Llosa, Gore Vidal, João Guimarães Rosa, Moacyr Scliar.
À direção do veículo alugado que roda das 7h às 20h atendendo a solicitações por aplicativo de transporte está o professor de inglês Celso Camargo, 60 anos, de Porto Alegre. Leitor insaciável desde a infância, ele protagoniza o que pode parecer loucura para amantes das letras: está doando milhares de títulos da biblioteca do pai, herdada há 20 anos, e da sua própria. Os volumes estufam uma sacola, presa ao encosto, reabastecida todos os dias.
— Ih, alguém esqueceu — repetem os usuários ao entrar.
— Não! Estou distribuindo — esclarece Celso.
O apreço pela leitura foi estimulado em duas frentes. Em casa, Sérgio Garcez Mancio, que trabalhou com fundos de investimento, devorava de tudo — completava palavras-cruzadas com auxílio do dicionário — e oferecia variedade à família. Sexta-feira era dia de a gurizada ganhar revistas e livros na residência onde se liam cinco jornais.
Na escola, o irrequieto Celso do 1º ano do Ensino Fundamental do Inácio Montanha ficou contente quando a professora o mandou de castigo para a biblioteca. Fartou-se. Até o 4º ano, conta o motorista, já tinha percorrido todo o acervo do colégio. Para alcançar os volumes destinados aos alunos mais velhos, no alto das estantes, Celso improvisava degraus com livros empilhados. Marcaram-lhe as histórias de Monteiro Lobato e Erico Verissimo.
— Me tornei um leitor tão voraz quanto o meu pai — constata.
Com a pandemia e a interrupção das aulas particulares que ministrava, o professor teve de garantir outra fonte de renda com o aplicativo. (Não era novato no ramo: durante parte do período em que morou nos Estados Unidos, guiou uma limusine pelos caminhos estrelados de Los Angeles, na Califórnia, onde conduziu a atriz Julie Andrews.) Surgiu então a ideia de começar a se desfazer dos livros de imenso valor afetivo, numerosos demais para caber no próximo endereço — a casa onde o professor vive com a mãe, de 90 anos, está à venda.
— Sou um educador. É parte da minha profissão disseminar o conhecimento — justifica Celso, que, ao tratar um câncer na próstata, decidiu que deveria aprender a praticar o desapego e promover a cultura. — Me sinto muito gratificado por cada passageiro que levou um livro e talvez tenha redescoberto o prazer da leitura.
Quando encosta o automóvel para as pessoas entrarem, Celso dá a devida explicação sobre a sacola com livros. Insiste em recitar Castro Alves:
— Oh! Bendito o que semeia / Livros... livros à mancheia... / E manda o povo pensar! / O livro caindo n’alma / É germe — que faz a palma, / É chuva — que faz o mar.
Para seu desânimo, a maior parte não presta atenção, preferindo mergulhar no telefone celular. Mas há aqueles que finalizam a viagem encantados, deixando recados e cinco estrelas na avaliação do serviço: “Gestos como esse mudam o mundo!”, “Ótima iniciativa!”, “Nota 1000! Obrigada pela atenção, gentileza e educação!”, “Tive uma conversa inspiradora”, “Simplesmente o melhor motorista que já peguei. Ótimo papo, ganhei livro, tinha brownies… Foi demais”.
Sobre os brownies: para reforçar o orçamento, Celso vende os doces que ele mesmo produz.
— Tenho balinhas também — emenda, orgulhoso da boa impressão que causa na repórter.
Celso começou distribuindo clássicos guardados nas prateleiras da biblioteca da casa na Vila Assunção, na zona sul da Capital. Em sete meses, já passou adiante cerca de 600 títulos. Restam em torno de 5 mil. É a minoria que aceita os presentes, lamenta Celso, e muitos usuários os levam apenas porque são grátis.
Há os intocáveis, dos quais o bibliófilo não vai se separar. Entre eles estão Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley, Cem Anos de Solidão, de García Márquez, À Paz Perpétua, de Immanuel Kant, e uma coleção de Erico Verissimo. Repousam em sua cabeceira, “não vão para ninguém”. Até aqui, Celso deixa transparecer grande satisfação com a empreitada, apesar de alguns momentos difíceis:
— Me separei do Galeano com dor no coração, mas o povo precisa ler.