Por Roséli Olabarriaga Cabistani
Psicanalista, membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (Appoa), professora e doutora pela UFRGS
Nossa relação com a dita realidade é sempre atravessada pelo que temos de singular, o que equivale a dizer que a forma como a realidade ou as evidências se apresentam para cada um não é a mesma. Há mais de meio ano temos vivido uma pandemia que causou um número estratosférico de contaminação e mortes no mundo. No Brasil, atingimos o número de 150 mil mortes, isso se não considerarmos as subnotificações, o que nos coloca num processo coletivo de luto, pois dificilmente alguém neste país não conhece alguma pessoa ou não tenha um parente que tenha falecido por covid-19
Temos sido cotidianamente bombardeados pelos noticiários sobre a pandemia, então não é possível pensar que faltam informações sobre os cuidados para evitar o contágio pelo coronavírus, de nós próprios e dos outros. Falta, sim, uma orientação clara das autoridades que representam o governo de nosso país. Essa situação impossibilita que referências simbólicas, ordenadoras e pactuadas, sirvam de baliza para que as pessoas possam encontrar pontos de referência, onde avaliar se os cuidados que tomam diante da pandemia são excessivos, ou faltosos. Diante dessa ausência de orientação unificada, resta à população brasileira seguir as normas de saúde que sua formação e as referências locais auxiliam a constituir.
Já assisti e escutei cenas nas quais pessoas se agridem por causa dessas diferentes posições. Todos pensam ter razão, e torna-se uma situação com total impossibilidade um se fazer escutar pelo outro. O sujeito que grita contra o que usa máscara não tem nenhum desejo de diálogo e atira suas palavras e gritos como quem joga pedras. Aqueles que recriminam os de máscaras no queixo estão igualmente convencidos da verdade de sua posição e, quando gritam, estão também desprezando a palavra e a escuta do outro. É como aquela cena que todos já vimos um dia em que a falência de uma relação frustra tanto que xingar o outro é uma certa forma de lamento pelo que se perdeu e que não pode ser reconhecido.
Podemos dizer que a ciência é a verdade que temos hoje, que está aí para ajudar, mas a questão é que a ciência chega até nós por meio de discursos, que por sua vez tecem nossos laços com os outros. Se nossos laços estiverem cortados, não vamos querer saber nada da ciência, da pesquisa, nem se isso for para salvar nossa vida e a dos outros. É por isso que o dizer está num lugar de impotência, empobrecido. O pensamento também está relegado a sua reprodutibilidade. Aqueles que tradicionalmente nos ensinavam a pensar, os professores, foram tremendamente humilhados e desvalorizados pela política atual. Então, por que haveríamos de questionar profundamente os fatos e os rumos da vida em sociedade?
A pandemia alterou radicalmente nossos modos de vida e convivência. Sentimos essa situação como um golpe que instituiu uma grande perda, impôs muitos limites a todos e trouxe para a ordem do dia um assunto do qual tentamos desesperadamente nos afastar e, se possível, apagar da face da terra: nossa finitude.
A proximidade da morte, nossa vulnerabilidade, é um golpe em nosso narcisismo, pois coloca em questão o modo como o capitalismo nos subjetivou. De que adianta estarmos tão rodeados pelos objetos de prazer que nosso dinheiro pode comprar se continuamos tão desamparados como um bebê diante da vida?
Ocorre que, na situação de confinamento, indicada para evitar a propagação do vírus, criou-se um intervalo em nosso viver frenético. Temos a experiência de uma temporalidade mais lenta, a solidão para alguns, o encontro evitado para outros, e isso abre frestas, janelas para repensar a vida. A vida que eu levo tem valido a pena? Como quero pensar o caminho que percorro no meu viver, que sentido ele tem, para mim e para os que me rodeiam? Podemos recolher muitos ganhos nisso, repensar, reconstruir uma vida que incorpore uma ética, na forma de nos relacionarmos com os outros e com nossos desejos mais inconscientes.
Para alguns, essas reflexões são muito difíceis de enfrentar. Melhor sair com a máscara no queixo, pois sempre dá para erguê-la e escapar das punições. Mas, ainda sim, coloco meu direito individual em contraposição à pluralidade que essa nova vida pede.
Então minha indicação de psicanalista e cidadã é: continue a usar máscara, se higienizar e não aglomerar. Se puder, pergunte as razões para o sujeito não se cuidar e se o medo não permitir, se afaste, mas nunca agrida quem não usa máscara, isso não vai mudar a situação e só vai nos tirar aquilo que nos faz humanos, a necessidade de falar com os outros.