Por Gerson Smiech Pinho
Psicanalista, membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (Appoa) e do Centro Lydia Coriat, doutor em Psicologia Social e Institucional pela UFRGS
Inúmeros guarda-sóis coloridos, rodeados por uma multidão de pessoas, esparramam-se sobre as areias de praias do Rio de Janeiro. Tais imagens, típicas de um feriado, não teriam por que causar qualquer estranhamento, não fosse o fato de estarmos em meio a uma pandemia com uma série de recomendações quanto à necessidade de distanciamento, uso de máscaras e não formação de aglomerações. Obviamente, tal fenômeno não se limita às praias cariocas. Em diversos lugares, constata-se o paulatino relaxamento em relação às indicações para prevenção do novo coronavírus. Seria esse o prenúncio de que a pandemia se aproxima do fim?
Evidentemente, a redução no número de novos casos diários e de óbitos no último mês, tanto no contexto nacional quanto em nosso Estado, é uma ótima notícia. A isso, somam-se a gradativa retomada de atividades comerciais e de serviços, assim como os avanços sobre a viabilidade de uma vacina. Esse conjunto de aspectos, associado à saturação por mais de seis meses de confinamento, certamente contribui para que certo afrouxamento ocorra. Contudo, um elemento fica esquecido nessa conta – mesmo que as cifras de infectados e de mortos tenham diminuído e se estabilizado, ainda permanecem bastante altas. Já se perderam e continuam se perdendo muitas vidas. No mundo, são mais de 1 milhão de mortos; só no Brasil, já se ultrapassam os 150 mil.
Capturados pela correnteza de tempos tão peculiares, carentes de noção sobre o futuro imediato, ficamos facilmente perdidos a respeito de quais referências tomar para nos orientar. Em meio ao cruzamento de tantas questões – de âmbitos como saúde, economia, e política, entre outros –, encontramos uma equação de bastante difícil resolução.
Em 1915, Sigmund Freud escreveu um notável texto em que trata do modo como encaramos a morte, intitulado Considerações Atuais Sobre a Guerra e a Morte. Naquele momento, a abordagem desse tema não devia nada ao acaso. A Europa atravessava a Primeira Guerra Mundial e, segundo o pai da psicanálise, aquele evento trouxera uma marcante perturbação na atitude de seus contemporâneos face à morte.
Ainda que a morte seja um evento natural e incontestável, visto que constitui o desfecho inevitável de qualquer forma de vida, em nosso dia a dia manifestamos a propensão de colocá-la de lado, de esquecer sua presença peremptória. Atravessamos nossas vidas ignorando a ideia de nossa própria morte, acalentando uma espécie de fantasia de imortalidade. Essa tendência de excluir a morte dos cálculos da vida é posta em xeque quando perdemos alguém, principalmente uma pessoa com quem temos fortes laços de afeto. A possibilidade de admitir a morte de outrem, de inscrever sua perda em nossa existência, constitui o que é próprio ao trabalho de luto.
Assim como no período da guerra atravessado por Freud, o atual tempo de pandemia tem alterado o tratamento habitual que damos à morte. Não é possível negá-la ou esquecê-la provisoriamente, na medida em que as pessoas não estão morrendo isoladamente, mas em grande número, milhares em um único dia, por uma mesma razão.
Se esses fatos perturbam nossa relação costumeira com a morte, tudo indica que a tendência a mantê-la a distância persiste. Aos poucos, habituamo-nos a cifras de mortos cuja impessoalidade faz com que aparentem não representar aquilo que verdadeiramente retratam. Como sublinha Freud no texto citado, nossa predisposição é não levar em conta a morte, nem nossa própria, nem a do outro. A sensação de que a pandemia chegou ao fim e de que a vida se encaminha à normalidade, mesmo que nada saibamos sobre como o contexto atual irá evoluir, podem ser consideradas formas de expressão dessa tendência.
Em outra direção, deixar-se tocar pela morte de nossos semelhantes, ainda que não os conheçamos, pode ser um elemento importante na difícil tarefa de encontrar caminhos pelos quais transitar nesse momento. A tristeza por tantas vidas perdidas coloca em relevo os laços de responsabilidade que nos ligam uns aos outros na constituição da vida social, base de um sentimento de coletividade, contrário ao individualismo. Desse modo, a experiência coletiva de luto por nossos mortos pode ser um elemento fundamental para navegar por esse tempo tão particular, cujo desfecho ainda nada sabemos a respeito.