É difícil tirar Kali Fonseca, 57 anos, do sério. Os quatro principais motivos de ela ter trocado Porto Alegre pela casa em Xangri-Lá respondem por Tito, Bruna, Pepeu e Princesa, os quatro animais de estimação que andavam ansiosos e inquietos, confinados em apartamento em Porto Alegre. Aposentada e sem prazo para retornar à Capital, ela relaxa e se distrai com os mascotes, que passam o dia no jardim ensolarado. A irritação, no início da semana, veio da tela do celular.
Em um grupo de Facebook dedicado a denúncias e pedidos de providência ao poder público no município, ela deparou com uma postagem questionando o comportamento dos “veranistas” que haviam visitado a cidade no final de semana anterior. Enquanto o governo do Estado anunciava aumento de casos na região e restrições, o Litoral Norte se viu tomado de turistas em ritmo de verão (até mesmo nos termômetros, que marcavam 30°C), passeando livremente pela orla e se aglomerando com inúmeras pessoas sem máscaras.
Não foi a reflexão da moradora que irritou Kali, mas um comentário sugerindo expulsar quem não é morador da cidade.
— Olha, tudo bem criticar. Mas não pode ser radical, agressivo e preconceituoso dessa forma. Respondi ao comentário lembrando que o primeiro caso de coronavírus na cidade, veja só, foi de um servidor municipal (um homem de 46 anos, em 27 de abril, possivelmente contaminado em viagem a São Paulo). E sugeri que a pessoa publicasse também o nome do seu estabelecimento comercial, para quem é de fora não frequentar — ironiza Kali, para demonstrar a importância dos forasteiros para a economia local.
As cenas do fim de semana de 20 e 21 de junho incendiaram a rusga entre visitantes e moradores dos municípios litorâneos, que cresce desde março. Funcionária de uma grande loja de departamentos em Capão da Canoa, Isadora Santos, 20 anos, perdeu as contas da quantidade de clientes que ela pediu que vestissem máscara no sábado anterior.
— A gente percebia que, na cabeça delas, ao sair das suas cidades, elas tinham saído da pandemia. Algumas chegaram a me dizer que tinham vindo para o litoral só porque as lojas de Porto Alegre estavam fechadas. Só que aí elas voltam e o vírus fica, né? Acaba prejudicando quem mora e trabalha por aqui — relata a jovem.
Segundo o prefeito de Tramandaí, Luiz Carlos Gauto da Silva, a Guarda Municipal realizou nada menos do que 1,2 mil abordagens nos dois dias. Neste fim de semana, a orla será fechada.
— Uns argumentam que são imunes, outros alegam direito de ir e vir, falam que a pandemia é invenção de políticos... tem de tudo. Enquanto isso, os moradores me pressionam para fechar as "fronteiras", o que é inconstitucional. Está pesado o clima entre os dois grupos — conta o prefeito da cidade que, nesta sexta-feira (26) à noite, somava 52 casos da covid-19 e três mortes.
Porém, está cada vez mais difícil dissociar visitantes e moradores. Um dos efeitos de a pandemia ter se prolongado já por três meses é que muitos migraram do primeiro grupo para o segundo por tempo indeterminado. Isso ocorreu sobretudo com as famílias que têm integrantes de grupos de risco.
O casal Romeo Schmitt, 79 anos, e Maria Elisabeth Schmitt, 77, por exemplo, está confinado desde março em Xangri-lá sem previsão de retorno. Não saíram nem para comprar máscaras. Costuraram as suas em casa. Elisabeth participa até de um coral dentro de casa.
— Se não pode sair de casa, melhor e mais seguro ficar na praia. O único problema é a saudade dos filhos e dos netos, mas igual não poderíamos vê-los em Porto Alegre. Então a gente mata a saudade pela internet — conta Romeo.
Outros fazem movimentos pendulares: passam somente os dias necessários em cidades como Porto Alegre e Caxias do Sul e retornam ao litoral para reencontrar a família. Algumas residências abrangem os dois exemplos: o marido de Kali, por exemplo. Enquanto ela se instalou no litoral com os cães e gatos, Gustavo Fonseca, 61 anos, toca uma empresa de locação de contêineres na Região Metropolitana.
Vacinação encontrou mais pessoas do que cadastros
Um dos melhores indicadores de que essa divisão faz cada vez menos sentido veio na vacinação contra a gripe neste ano. Em razão da pandemia, Tramandaí realizou as imunizações de porta em porta. Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a cidade tem 8.204 idosos. Tinha a meta, portanto, de vacinar ao menos 5,7 mil deles (70%). Encontrou e vacinou 11,7 mil. Em Imbé, frente a uma meta de 4 mil, foram vacinados 10 mil.
A maior quantidade de pessoas em casa também é facilmente detectada pelas empresas de vigilância patrimonial. Conforme Mauro Lunkes, diretor da empresa STV, o maior número de clientes nas casas tradicionalmente de veraneio exige mais rondas ostensivas, e impediu que a empresa mantivesse a rotina de dar férias a boa parte do efetivo de vigilantes no inverno.
— Não chega a ser o mesmo do verão, mas é um movimento semelhante aos feriados mais concorridos, aqueles quando o tempo já está melhorando, como os de setembro e novembro — compara o empresário.
Se hoje isso causa preocupação com leitos hospitalares e condutas de prevenção ao coronavírus, a longo prazo essa residência prolongada em meses atípicos deve resultar em crescimento econômico para os municípios. A pandemia serviu para mostrar que viver no litoral com mais qualidade de vida e conciliar emprego em outros centros urbanos é menos difícil do que se imaginava. A tendência já aparece no ramo imobiliário.
— No nosso mercado, temos a expressão de que é preciso sobreviver ao “JJA”, sigla para junho, julho e agosto. Ainda é cedo para saber como vai ser, mas entre março e junho, em comparação ao ano passado, as vendas de imóveis cresceram 20% — conta Fabricio Chacker, presidente da Associação dos Corretores e Imobiliárias de Capão da Canoa.
Outro aspecto apontado por Chacker é a proliferação de imobiliárias que trabalham com aluguéis no Litoral Norte, algo que era impensável há pouco mais de 10 anos. Hoje, boa parte delas aluga imóveis para pessoas como Faruk Lindemann, 36 anos, e família. A pandemia, que suspendeu as aulas do filho Brian, 12 anos, por tempo indeterminado, gerou a ocasião perfeita para realizar de uma vez o sonho dele e da esposa, Gislaine, 43 anos, de se mudar para a praia.
— Trabalho como segurança, é um ramo que está melhor aqui do que em Canoas, onde morávamos. Isso aqui é outra vida — conta, apontando para a orla de Capão da Canoa, tranquila no entardecer de quarta-feira, enquanto tira a máscara para o chimarrão.
Prefeitos pedem reforço na saúde
O prefeito de Capão da Canoa, Amauri Magnus Germano, é outro que se equilibra entre as preocupações com o coronavírus e o otimismo com o futuro. Na quinta-feira, o município publicou um decreto com restrições ainda mais severas do que as previstas na bandeira vermelha, classificação em que se encontra segundo o monitoramento do governo do Estado. Aos finais de semana, para evitar novos casos de aglomerações, todo o comércio será fechado a partir do meio-dia de sábado, à exceção de farmácias e postos de combustíveis. Supermercados e restaurantes, só com telentrega. As restrições devem seguir em vigor mesmo que a bandeira do município mude em breve.
— O problema não é vir aos finais de semana, é como vir. Se vierem para desfrutar do imóvel no litoral com a família, tudo bem. Mas não pode vir em clima de férias do vírus. Todas essas medidas são no sentido de evitar pessoas na rua, mesmo em filas. Consideramos isso uma colaboração com o governo do Estado para frear os casos enquanto ocorre um reforço no sistema de saúde — declara o prefeito.
A fala inclui sutilmente uma cobrança ao Piratini. Por meio da Associação dos Municípios do Litoral Norte, os municípios reivindicam um reforço no sistema de saúde proporcional ao aumento sazonal da população. Presidente da associação e prefeito de Imbé, Pierre Emerim da Rosa estima que os 23 municípios da região tenham no mínimo 600 mil pessoas no momento, quase o dobro do que a contabilidade oficial, de 397 mil pessoas. Até sexta-feira à noite, eles somavam 586 casos de covid-19 e 14 mortes.
O problema não é vir aos finais de semana, é como vir. Se vierem para desfrutar do imóvel no litoral com a família, tudo bem. Mas não pode vir em clima de férias do vírus
AMAURI MAGNUS GERMANO
prefeito de Capão da Canoa
– Não é difícil mensurar o aumento de população. É só olhar o consumo de luz e comparar com o de 2019, por exemplo – declara Pierre.
O prefeito cita o exemplo de Santa Maria, município de 282 mil habitantes que conta, segundo o monitoramento da secretaria estadual de Saúde, com 158 respiradores. Enquanto isso, toda a região que abrange o Litoral Norte tem 68.
Já a expectativa de que boa parte desse contingente permaneça nas cidades anima os prefeitos. Isso é considerado uma vantagem competitiva quando a economia fizer os primeiros movimentos de retomada pós-covid-19. Em Capão da Canoa, por exemplo, o prefeito cita investimentos privados na área de educação para atender estudantes dos ensinos Fundamental e Médio, muitas vezes o único motivo de as famílias não viveram no litoral.
Um desses investimentos já pode ser avistado na Avenida Maurício de Souza, onde ficava o antigo camping Santa Luzia. Ali está sendo construído o novo prédio do Colégio Pastor Dohms, rede com origem em Porto Alegre que vai se mudar de um prédio alugado na Avenida Araribóia para o novo local em 2021 e ampliar as vagas de 450 para 750 alunos. Segundo a diretora Odila Schawalm, o movimento de migração de estudantes para o litoral já está em curso. Mesmo com aulas remotas, três alunos se transferiram para a unidade de Capão nos últimos dias e outros negociam.
A “serenidade” das crianças e adolescentes que estudam na unidade no litoral surpreendeu a própria diretora, quando assumiu a gestão do colégio há dois anos.
— Nas primeiras semanas eu ficava insistindo para os alunos esperarem pelos pais dentro da escola, e não batendo papo na calçada. Eles ficavam me olhando como se eu fosse um extraterrestre. E eu era mesmo. Só depois eu assimilei que aqui era possível uma vida mais tranquila — diverte-se Odila.
Passada a covid-19, é algo que muitos almejam.