Por Ana Carolina da Costa e Fonseca
Professora de Filosofia na Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre (UFCSPA)
Como muitos de vocês, estou em casa em isolamento social. Sou professora universitária e, sempre que posso, estou lendo. É preciso fazer do limão uma limonada, não? Se precisamos ficar em casa isolados, ao menos que seja lendo muitos e bons livros.
Como a maioria das pessoas, não penso na velhice. A velhice é o momento da vida que, por um lado, desejamos que chegue algum dia. (Não conheço quem diga que quer morrer jovem!) Ao mesmo tempo, não queremos que chegue tão cedo, pois com a velhice chegam as doenças e, algo em que pensamos pouco, a solidão. Muitos de nossos amigos morrerão antes de nós; os mais jovens da família estarão vivendo suas vidas. Para evitarmos ou, ao menos, para retardarmos o surgimento de algumas doenças, podemos ter uma vida com alimentação saudável, pouco estresse e fazer atividades físicas. E aí vocês podem me perguntar: quem consegue tudo isso, especialmente a parte do pouco estresse? Pois é.
O que é estresse para pessoas que se identificam com o sexo de nascimento (cisgênero), isto é, para a maioria de nós? E para travestis e transgêneros? Aqueles que, durante muito tempo, tiveram sua existência negada, como se não houvesse pessoas transexuais, e, depois que não foi mais possível negar que existem, passaram a ser descritos, igualmente a muitas outras pessoas discriminadas, como “os outros”.
Transexuais são aqueles que não são cisgêneros. Travestis, apenas recentemente, começaram a ser vistas como mulheres (são as travestis e não os travestis) e como algo além de prostitutas e perigosas. Mulheres trans começaram a ter alguma visibilidade no início da década de 1980, quando Roberta Close escandalizou o Brasil posando nua para a Playboy. Mesmo assim, lembrem-se da manchete “A mulher mais bonita do Brasil é um homem”. Não, Roberta Close não era vista como mulher! E homens trans passaram a ser conhecidos depois que João Nery publicou, em 2011, a autobiografia Viagem Solitária. Até então, parecia que não havia trans homens.
A invisibilidade trans é conveniente para quem é preconceituoso e quer fingir que vive em um mundo onde todas as pessoas são cisgênero. Quando não há como negar a existência de pessoas trans, a violência, verbal e física decorrente do preconceito se torna rotina.
Para compreender a realidade dos outros, nada melhor do que ler textos escritos em primeira pessoa por quem vive, dia a dia, uma rotina de sofrimento e discriminação. Suportar o bullying na escola para ter a possibilidade de chegar à universidade e escapar da prostituição, recriar laços de afeto após ter sido agredido e expulso de casa pelos próprios pais, sair de casa todos os dias com a certeza de sofrer algum tipo de agressão, temer a ida a um banheiro público porque nem o feminino, nem o masculino são espaços seguros para ações que deveriam ser banais são algumas das violências vividas por pessoas trans – e por homossexuais também, e desconhecidas para a maioria das pessoas cisgênero e heterossexuais.
Em 2019, dois outros bons livros de autores trans foram lançados: Velhice Transviada, também de João Nery, e Vida Trans, que contém o relato de dois homens e de duas mulheres trans, Amora Moira, Márcia Rocha, T. Brant e João Nery. Como o próprio título diz, João reflete, em seu último livro – finalizado dois dias antes da sua morte e lançado postumamente – sobre a velhice, evento raro na vida de pessoas transexuais ou travestis, que têm a solidão como o maior fantasma. No outro, há quatro relatos de transexuais e travestis muito diferentes em idade, origem socioeconômica e formação acadêmica.
Em comum, há, em um primeiro momento, dificuldade de compreenderem quem são, pois o que são escapa às possibilidades que lhes são oferecidas quando crianças e adolescentes: serem pessoas em que sexo e gênero correspondem e com desejo sexual por pessoas do sexo oposto. E, em um segundo momento, quando se reconhecem como transexuais e travestis, há a tentativa de fazer o que chamam de transição e viverem conforme sua identidade de gênero.
Escrever sobre transexualidade, mostrar em uma novela da Rede Globo que há pessoas transexuais dá visibilidade aos trans que se reconhecem enquanto tais e permite que transexuais se reconheçam em outras pessoas, para se entenderem e viverem o que são como quiserem.
Os livros
Velhice Transviada: Memórias e Reflexões
De João W. Nery. Ed. Objetiva, 176 páginas, R$ 44,90 (R$ 29,90 o e-book).
Vida Trans: A Coragem de Existir
De Amora Moira, Márcia Rocha, T. Brant e João Nery. Ed. Astral Cultural, 176 páginas, R$ 30 (R$ 5 o e-book).