A reação foi de tristeza quando a professora de mandarim Si Liao, 32 anos, leu em seu canal no YouTube, o Pula Muralha, comentários com frases racistas como "me ensina a fazer sopa de morcego" e "vocês comem isso, então merecem". Em resposta, pediu para seguidores publicarem fotos unindo as mãos em forma de coração com a hashtag #EuNaoSouUmVirus. A situação ilustra relatos da comunidade asiática no Brasil e no mundo: após o início da epidemia de coronavírus, ganharam força os comentários racistas e xenófobos.
— Eu tenho um amigo coreano que entrou no Uber e o motorista perguntou se ele era chinês. E aí, se fosse chinês, teria que descer? E isso em São Paulo. Vemos os números (sobre pessoas infectadas), mas cada número é uma pessoa. O que a gente mais precisa agora é de força, não de preconceito — diz a youtuber, que é chinesa e vive no Brasil há nove anos.
A menção à sopa de morcego é por conta de um vídeo que circula nas redes sociais no qual uma mulher come a iguaria. Na verdade, a gravação, de uma blogueira, ocorreu em Palau, arquipélago do Pacífico. As imagens foram usadas para criticar a suposta culinária chinesa – justo no Brasil, onde se come coração de galinha, mocotó no Rio Grande do Sul e carne de rã no Norte.
Si Liao passou a produzir uma série de vídeos sobre coronavírus para levar informação a seus seguidores: a ideia é combater o preconceito.
— A China é um país muito grande, igual ao Brasil, com uma história de 3 mil anos… Tem pessoa que fala que os chineses comem cachorro. Na verdade, comer cachorro é proibido em quase toda a China, tirando uma região específica, onde muita gente passava fome. Mas, e aí, você vai perguntar se a pessoa come cachorro só porque ela é oriental? — questiona.
Após a administração de um prédio em São Paulo obrigar funcionários asiáticos a circular com máscara e a usar somente o elevador de serviço, o Instituto Sociocultural Brasil-China (Ibrachina) emitiu uma nota de repúdio na qual afirma que "o combate aos crimes de racismo e xenofobia é um compromisso de todos que defendem uma sociedade justa e igualitária".
Para combater o conteúdo falso que circula em redes sociais, o Ibrachina criou o Observatório do Coronavírus, espécie de boletim diário que reúne notícias sobre o tema para compartilhar informação qualificada.
— Nossa ideia é transmitir para a sociedade brasileira dados concretos para evitar essas fake news. Falta conhecimento sobre a China para muitos brasileiros. Carecem de informações sobre como é o trabalho lá, como as empresas funcionam, como é o turismo — diz o presidente do Ibrachina, Thomas Law, neto de chineses.
A entidade também criou uma central de denúncias pelo email racismonao@ibrachina.com.br. Um caso que chegou ao canal ocorreu em uma churrascaria de São Paulo, onde uma família deixou de ser atendida pelo garçom – eles eram descendentes de chineses.
Epidemias e doenças contagiosas são cenários em que o preconceito ganha força. A China, em especial, acaba sendo alvo novamente, após ter enfrentado outra epidemia, de Sars (Síndrome Respiratória Aguda Grave, na sigla em inglês), em 2003. Antes da definição oficial de nome para o novo coronavírus, agora chamado de Covid-19, havia outros nomes: vírus chinês, doença da China, gripe da China.
Comentários preconceituosos em situações de perda de controle surgem para, de forma inconsciente, culpar o "outro" e, assim, afastar qualquer sensação de perigo, destaca Jean Segata, professor da pós-graduação em antropologia social da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Epidemias, assim como tempestades e enchentes, trazem medo porque rompem a ilusão de que o homem controla a natureza, diz ele.
— Na verdade, todos nós estamos suscetíveis a doenças, pragas e tragédias. A gente sempre quer deslocar o problema para fora de nossa responsabilidade, então é fácil estigmatizar outras populações. O mesmo ocorre com outras doenças. Nesse raciocínio, a dengue é dos pobres, o HIV é dos gays e drogados, o zika é dos nordestinos… — pontua o antropólogo, também coordenador do Núcleo de Estudos Animais, Ambientes e Tecnologias.
No dia a dia, diz Segata, vivemos como se fôssemos seres que não fazem parte deste planeta. Grandes problemas que envolvem clima, animais e vírus, como o coronavírus, são um lembrete de que temos limites: somos parte de um todo e não podemos tudo.
Esclareça suas dúvidas sobre o coronavírus
O que é?
O coronavírus é uma família de vírus que causa síndromes respiratórias, como resfriado e pneumonia. Versões mais graves do coronavírus causam doenças piores, como a temida Síndrome Respiratória Aguda Grave (Sars, sigla em inglês), responsável pela morte de mais de 600 pessoas na China e em Hong Kong entre 2002 e 2003. A versão de vírus que circula agora é uma espécie nova, desconhecida da comunidade médica, e o medo é de uma pandemia global.
Quais os sintomas?
Dentre os possíveis sintomas estão febre, dor, dificuldade para respirar, tosse, diarreia e pneumonia.
Onde surgiu?
Na cidade de Wuhan, na província de Hubei, na China. A metrópole de 11 milhões de habitantes está isolada. Trens e voos foram interrompidos e detectores de febre foram instalados nas estações de embarque e no aeroporto. Nas estradas, a temperatura corporal é medida pelos postos de controle e, para sair da cidade, o transporte não pode ser feito de carro. Para evitar qualquer concentração de pessoas, as autoridades anularam as comemorações do Ano-Novo Lunar chinês na cidade. As autoridades também proibiram qualquer espetáculo e fecharam um museu.
Como surgiu?
O Centro para Vigilância e Prevenção de Doenças (CDC), equivalente dos Estados Unidos à Anvisa, identifica um grande mercado atacadista de peixes e frutos do mar na cidade de Wuhan como a origem das infecções.
Como ele é transmitido?
De animal para pessoa e de pessoa para pessoa. Segundo o governo chinês, o vírus pode se modificar e ser transmitido mais facilmente. Conforme o CDC, pessoas mais velhas parecem ter maior risco.
Como é o tratamento?
Não há tratamento contra o coronavírus em si, apenas contra os sintomas. Pacientes tomam remédio para baixar a febre e podem receber máscara de oxigênio para respirar melhor, por exemplo.
Quais os cuidados?
Lavar as mãos (sobretudo quem passar por aeroportos), evitar contato dos dedos com mucosas do nariz, olhos e boca. É recomendável usar álcool em gel.
A vacina contra a gripe protege?
Não. Segundo Alexandre Zavascki, chefe da Infectologia do Hospital Moinhos de Vento e professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), o vírus da gripe não é o coronavírus, e sim o influenza. Portanto, a vacina regular tomada antes do inverno não protege.
Por que o nome coronavírus?
O nome vem do latim corona, que significa coroa. Visto de um microscópio, o coronavírus parece uma coroa ou auréola.