Aulas, saídas de campo, viagens para congressos, artigos, seminários, reuniões com grupos de pesquisa, leituras, monografia, dissertação, tese, banca. Ingressar em uma pós-graduação é aceitar o desafio de assumir um número sem fim de compromissos que pode durar anos e renunciar a horas de sono, lazer e convívio social. Por si só, o curso é uma empreitada e tanto: a dedicação exclusiva aos estudos é capaz de preencher uma agenda inteira com tarefas. Mas há quem vá além e encara a missão de conquistar o diploma ao mesmo tempo em que precisa trabalhar e cuidar dos filhos.
Loucura? Para muitos estudantes, a oportunidade de se aperfeiçoar e a aventura da maternidade/paternidade se cruzam – ou as crianças chegam durante a pós, ou a pós é iniciada quando a família já aumentou. É difícil, mas não impossível, como provam as histórias relatadas nesta reportagem.
Natalia Caliari, 35 anos, está na quarta pós-graduação. De sua área inicial de formação, a enfermagem, a hoje empresária decidiu migrar para o ramo da educação, o que exigiu uma nova trajetória de capacitação. Ela engravidou do primogênito quando estava prestes a iniciar o segundo curso. A gestação avançou junto do cronograma das aulas, e Samuel nasceu antes do término do período letivo. Nos finais de semana, Natalia recebia o apoio do marido ou da mãe, que a acompanhavam até a escola, ficando em outra sala com o bebê. A intervalos regulares, a aluna saía para amamentar. Esse esquema foi mantido por cerca de três meses. O trabalho de conclusão de curso (TCC) foi elaborado enquanto a mãe descobria a rotina de lidar com um recém-nascido.
— O nascimento do Samuel não atrapalhou. Ficou mais desafiador. Tem o cansaço, a rotina de se adaptar ao primeiro filho, os horários ficaram bem corridos, mas não prejudicou o resultado do MBA. Fiz sem culpas, tinha um propósito muito forte — recorda.
Você precisa ter o propósito muito claro de por que vale a pena. Tem ganhos e perdas: você vai perder momentos em família, com os filhos, com o marido. Sua presença diminui. Mas quando você vê os ganhos que está tendo, consegue colocar isso na balança de maneira que não se culpe. A culpa não aparece, ou, se aparece, é bem gerenciada."
NATALIA CALIARI
Empresária e mãe
Samuel tinha apenas duas semanas de vida quando Natalia resolveu retomar as aulas de inglês. O marido, o engenheiro e empresário Pablo Barrera, 40 anos, acompanhou-a novamente, com o filho nos braços. Quando Pablo ficou impedido por causa do trabalho, Samuel dormia na recepção, observado pela secretária ou pela coordenadora, até que a mãe se liberasse.
No momento em que Natalia ingressou na terceira pós-graduação, Samuel se aproximava dos três anos – e então veio a gravidez do segundo filho, Nicolas. Como o curso era a distância, a organização familiar mudou. Além das demandas do pequeno, Natalia também estava envolvida com sua empresa de desenvolvimento organizacional. A solução foi colocar duas tarefas no mesmo espaço de tempo: via os vídeos em casa, no computador, ou pelo celular.
— Assistia às aulas durante o banho, lavando a louça. Foi cansativo, mas aproveitei bastante — conta.
A jornada não foi livre de percalços. Natalia já havia começado seu TCC, mas o prazo para a entrega coincidiu com o nascimento de Nicolas. Pediu prorrogação. Tinha apenas 20 dias para finalizar o texto, e eis que surgiu uma nova ideia. Apesar da impossibilidade de solicitar mais tempo para a conclusão, questionou seu orientador:
— Posso mudar agora?
Natalia se comprometeu a apresentar o TCC pronto até a data estabelecida. Escrevia enquanto Nicolas dormia ou nos períodos em que ele estava acordado, mas não mamando – aí, o caçula ficava com o pai. Samuel passava meio turno na escolinha. Pablo teve papel fundamental, trabalhando em esquema de home office para auxiliar nos cuidados com os pequenos. Natalia dormia muito pouco, mas cumpriu o prometido. “Morta”, como define, entregou o TCC.
— Aproveitei apenas uns 15% da ideia anterior, mas fiz no prazo e tirei 10 — orgulha-se.
A quarta pós começou no último mês de setembro, quando Nicolas estava com três meses. Mais experientes, os pais manejam melhor o excesso de demandas. As aulas de Natalia são novamente a distância, e ela assiste aos conteúdos quando pode. Está se cobrando menos, sem dias definidos para dedicar ao curso, como ocorreu antes.
— Quando os dois estão dormindo, também tento dormir.
Parceria do casal é fundamental
Natalia aponta um ingrediente fundamental para que os objetivos deem certo: a parceria do casal. Como ela vem se especializando em uma área nova para ambos – eles vão abrir uma escola –, ficou claro, desde o início, que os benefícios advindos dos cursos dela contemplariam os dois.
O esforço, portanto, era em prol de um objetivo comum. Ainda que assentado sobre bases bem definidas, sempre com muito diálogo, o projeto também causou impactos negativos, que ainda repercutem no dia a dia, como prejuízos à intimidade do casal. Juntos há sete anos, Natalia e Pablo aprenderam a valorizar os minutos e as horas de convivência, como quando cuidam do jardim ou compartilham um chimarrão. Bom humor não falta. Aproximava-se a última Black Friday, badalado dia de ofertas no comércio, e Pablo brincou:
— Vou botar uma plaquinha em mim para ver se alguém quer me aproveitar!
Pablo também toca, desde o início de 2019, uma pós em gestão e liderança. Natalia já olha para o segundo semestre de 2020: pretende ingressar em um mestrado. Para a mãe-estudante-esposa-empresária, o sucesso de uma escolha que exige tanto empenho depende de estipular metas bem definidas.
— Você precisa ter o propósito muito claro de que vale a pena. Tem ganhos e perdas: você vai perder momentos em família, com os filhos, com o marido. Sua presença diminui. Mas quando você vê os ganhos que está tendo, consegue colocar isso na balança de maneira que não se culpe. A culpa não aparece, ou, se aparece, é bem gerenciada — reflete Natalia.
Outro ponto essencial é construir, dentro das possibilidades, uma rede de apoio. Além do marido, Natalia pede ajuda à mãe, à sogra e aos padrinhos dos guris. O “pagamento” é a “gostosura dos meus filhos”, brinca ela quando solicita algumas horas do dia de alguém, para que fique com a dupla.
— Se não fosse esse apoio, não digo que eu não conseguiria, mas que facilitou muito, facilitou — reconhece.
Simultaneidade requer rede de apoio
A formação de uma boa rede de apoio, recomendação citada pela empresária Natalia Caliari como um dos ingredientes fundamentais para o bom andamento da vida acadêmica de um pós-graduando com filhos, também é ressaltada por professores e orientadores. Em muitos casos, eles próprios já experimentaram a simultaneidade desses múltiplos papéis, antes de se tornarem referência para uma série de alunos que encaram as mesmas jornadas.
Pró-reitor de Pesquisa da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Rafael Roesler lembra de quando ele e a esposa, ambos como pós-doutorandos em Neurobiologia, mudaram-se para a Califórnia, nos EUA, com uma filha pequena. Quase duas décadas atrás, destaca Roesler, as coisas eram bastante diferentes – a presença de uma criança no campus universitário não era vista com naturalidade, tampouco havia espaço kids em congressos. Eles conseguiram montar um grupo de auxílio no próprio ambiente de trabalho – colegas se dispunham a passar tempo com a menina. O orientador do pós ganhou destaque nesse enredo. Durante o período de adaptação da família no novo país, com a necessidade de procurar moradia e escola, o professor se mostrou compreensivo.
— O apoio dele, que entendia a questão familiar, foi fundamental — lembra.
Hoje do outro lado, Roesler afirma ficar superfeliz quando suas alunas anunciam uma gravidez. Ele se dispõe a promover as mudanças necessárias, reorganizando rotinas e datas.
— Mudo os planos em torno da gestação delas — conta.
Fernanda Staniscuaski, professora do Instituto de Biociências da UFRGS e pesquisadora do Centro de Biotecnologia da universidade, decidiu fundar, em 2017, o movimento Parent in Science (Pai/Mãe na Ciência), com o propósito de discutir a maternidade e a paternidade dentro do universo científico no Brasil. A inspiração veio da própria experiência e do que observa ao redor: o ajuste constante de peças e engrenagens para que seja possível conciliar a vivência em família com uma carreira na academia. Priorizar os filhos por determinado período leva cientistas a dedicar menos tempo à pesquisa, o que impacta na produção e acarreta perda de competitividade. Sem verba, os estudiosos não conseguem financiar suas pesquisas e, consequentemente, não publicam artigos. E, se não publicam artigos, não conquistam verba para outros estudos.
O ambiente acadêmico é hostil para as estudantes que se tornam mães. É comum alunas terem mais medo de contar (sobre a gestação) para o orientador do que para o pai.”
FERNANDA STANISCUASKI
Professora, pesquisadora e fundadora do movimento Parent in Science
Fernanda já atuava como docente quando engravidou pela primeira vez. À época, o marido era pós-doutorando. O casal resolveu adiar a entrada do primogênito em uma escolinha, prologando a permanência em casa. Revezaram-se e pediram auxílio aos avós do bebê, que só foi matriculado aos 11 meses.
No cotidiano da docência e da pesquisa, a bióloga vê muitos entraves burocráticos aos direitos garantidos por lei, como a extensão de quatro meses no período das bolsas de mestrado e doutorado para quem ganha nenê (alunos não bolsistas dependem de negociações com o orientador e o programa ao qual estiverem vinculados). Em termos institucionais, também há dificuldades: as universidades, em geral, não dispõem de creches, e benefícios como auxílio creche costumam ser de somas muito pequenas.
— A vida muda muito depois que um filho nasce. Muitas alunas estão longe de suas famílias ou são mães solo. E tem todo o terror quanto ao prazo da defesa, um estresse para conseguir prorrogação. Isso certamente impacta a experiência dessa estudante — diz Fernanda, mãe de um trio de meninos, entre um e seis anos.
Fernanda classifica como “hostil” o ambiente acadêmico para as estudantes que se tornam mães. É comum pós-graduandas ouvirem questionamentos acusatórios: “Onde já se viu engravidar agora?”.
— Ela recebe esse olhar de “o que é que você foi fazer?”. É comum o relato de alunas terem mais medo de contar (sobre a gestação) para o orientador do que para o pai. O primeiro sintoma de hostilidade é esse. Tenha sido uma gestação por acidente, tenha sido planejada, temos que respeitar — atenta Fernanda. — A empatia é um sentimento raro em relação à maternidade.
Prepare-se (quando possível) para a pós
Antes de começar
- A escolha do orientador é muito importante. Procure uma pessoa flexível, capaz de entender a situação, e que não seja uma fonte geradora de estresse para o aluno. Atenção: um orientador ou uma orientadora que é pai ou mãe não representa garantia de flexibilidade.
- Faça uma análise bem crítica e realista sobre o que você pretende pesquisar e atingir. Reflita atentamente sobre os prazos.
- Avalie todo o contexto: quem poderá ajudá-lo com as crianças quando você precisar se ausentar? Seu filho poderá frequentar uma escola de turno integral ou apenas de meio período? A instituição almejada permite a presença dos filhos em sala de aula, caso você não tenha um outro cuidador disponível?
- Seu parceiro ou parceira está de acordo com a realização do curso e disposto a colaborar? Quem não é do meio acadêmico pode ter dificuldade para entender e aceitar o alto nível de exigência de um mestrado ou, principalmente, doutorado.
Durante o curso
- Aprenda a pedir ajuda. Por maior que seja o seu esforço e a coesão de sua rede de apoio, será inevitável, em algum momento, perder aulas ou atividades de campo. É essencial que o grupo de pesquisa o acolha e entenda que haverá momentos em que você terá limitações. “Fazer um pedido não é atestado de fracasso”, conforta a professora e pesquisadora da UFRGS Fernanda Staniscuaski.
- Você achava que estava preparado para o desafio, mas, a certo ponto, sente que não vai dar conta. De novo: não tema solicitar auxílio. Converse com colegas que enfrentam realidades semelhantes e troquem ideias.
- Se o bebê chegar no decorrer do curso, informe-se sobre os seus direitos. E tenha paciência para lidar com os trâmites burocráticos, que podem requerer tempo e perseverança.