Em Porto Alegre na noite desta segunda-feira (21), o psicanalista italiano Contardo Calligaris defendeu que a "boçalidade" de nossa época está relacionada às incertezas de uma sociedade moderna na qual é preciso encontrar, em um mundo onde a religião não dita mais nosso destino, um significado para a vida. Ele evitou dar fórmulas simples para o sentido da existência, mas aconselhou o primordial: a tarefa de definir nosso objetivo é única e indelegável.
Em uma fala na qual costurou memórias íntimas com dilemas filosóficos e criticou indiretamente movimentos obscurantistas (como quando riu de quem nega o fato de a Terra ser redonda), Contardo foi o penúltimo palestrante no ciclo de conferências Fronteiras do Pensamento, no Centro de Eventos da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS).
Psicanalista e escritor italiano radicado no Brasil desde os anos 1980, Contardo Calligaris é doutor em psicologia clínica pela Universidade de Provence, na França, e foi aluno de figuras lendárias da filosofia ocidental, como Michel Foucault e Roland Barthes. Hoje, além de atuar como psicanalista em São Paulo e Nova York, é colunista da Folha de S.Paulo. Em seus livros ou textos na imprensa, é conhecido por refletir sobre a relação entre cultura, sociedade e psicanálise, com foco na angústia do indivíduo contemporâneo e na adolescência.
Na PUCRS, o psicanalista abriu a palestra com a fotografia da imponente biblioteca do Convento de São Bento, em São Paulo. Quando criança, contou, Contardo tinha uma biblioteca na sala de jantar. Certo dia, o pai, um médico cardiologista, apontou para os espaços vazios que ficam entre os livros na estante e disse que, por mais que se leia e se escreva, sempre haverá buracos nas estantes.
A metáfora do "espaço entre livros na estante" pode ser compreendida como a necessidade que temos de preencher vazios e, por consequência, de buscar sentidos para o que não entendemos. Há algo que nos falta e que nos motiva a sair em busca – e cada indivíduo tem a sua jornada.
— A ideia de que sempre faltará um livro para preencher o buraco na estante nos move. Não encontramos nunca um caminho-mestre que tape o buraco na estante — disse Contardo.
Mais adiante, o psicanalista exibiu uma fotografia em preto e branco de jovens armados em resistência contra o fascismo na Itália. O pai de Contardo, ex-prefeito de uma cidade próxima a Milão, recebeu uma carta da comunidade em agradecimento por ter negado juntar-se ao regime de Mussolini. Ao questioná-lo o motivo por ter sido antifascista, Contardo ouviu o pai dizer que "os fascistas eram muito vulgares".
A resposta singular (o uso de "vulgar" frente a qualquer outro adjetivo para se referir ao fascismo) deixou Contardo, à época, indignado. No entanto, hoje o psicanalista compreendeu a resposta do pai: enquanto exibia ao público fotografias de crianças armadas e de jovens fascistas queimando livros e jornais, ele defendeu que tais atos eram, sim, vulgares.
— Meu pai considerava que a apreciação estética era muito séria. Ele descreveria a injustiça como feiura e a boçalidade moral, como vulgaridade. O trabalho de ter um juízo estético sobre o mundo é grande. Existe hoje uma crítica ao hedonismo, que é o comportamento de colocar o prazer acima de tudo. Não vejo problemática em ter uma vida em busca de prazer, acho mais problemático pensar que a privação nos traz mérito. Para aproveitar os ditos prazeres da vida, é preciso de atenção, algo que nos faz falta no mundo e hoje. Somos uma cultura profundamente desatenta — avaliou.
A necessidade de focar-se no presente, defendeu Contardo, é ponto de partida para quem quer buscar prazer. E procurar boas sensações para si só se tornou possível na modernidade, no século 18, quando a religião perde força e deixa de pautar nossa moral e nossa vida. Com a vitória da razão sobre a fé, premissas caem por terra.
Se a busca pelo paraíso não é mais o objetivo de todos, por que estamos aqui? Qual o objetivo de nossa vida? Sem respostas prontas, precisamos nós mesmos produzir as próprias perguntas e encontrar as explicações. É em meio a esse cenário de insegurança frente ao que fazer e o que pensar, situa Contardo, que certos fenômenos atuais se explicam, como quem acha que a Terra é plana.
— Tento reprimir minhas dúvidas justamente quando a razão se afirma e eu duvido de minhas certezas. Mas eu reprimo a dúvida em mim? Não, faço isso no outro: a crise na minha fé se resolve ao professá-la. O missionário é aquele que mal consegue converter a si mesmo — critica Contardo. — O que responde ao medo da liberdade é a boçalidade. Ser boçal é reprimir no outro a liberdade que me apavora. Os desesperados pela feiura de sua vida concreta irão impor sua transcendência aos outros.
O medo se torna raiva e agressão. Mas, frente a isso, Contardo oferece uma saída:
— É possível ser leve sem ser leviano. A vida é algo que cada um tem que inventar. Uma maneira que não é boa é fugir das dores ou sofrimentos — concluiu, seguido de aplausos da plateia.
O Fronteiras do Pensamento Porto Alegre é apresentado por Braskem, com patrocínio de Unimed Porto Alegre e Hospital Moinhos de Vento, parceria cultural PUCRS, e empresas parceiras Unicred e CMPC. Universidade parceira UFRGS e promoção Grupo RBS.
Próximo convidado
11 de novembro: Luc Ferry, filósofo e ex-ministro da Educação na França
Conferências sempre às segundas-feiras, às 19h45min. No dia 11 de novembro, o evento retorna ao Salão de Atos da UFRGS para a última palestra do ano. Os ingressos já estão esgotados. É possível se inscrever em lista de espera acessando este link.