Vitor Necchi*
Depois de concluir o antigo Segundo Grau no Colégio Militar, ingressei na Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Faço questão de escrever o nome completo da UFRGS porque, ao nominá-lo em sua totalidade, evoco a grandeza de umas das instituições sob ataque do governo federal. Mas tratava era da minha chegada ao Ensino Superior público em 1988, três anos após o término oficial da ditadura militar. Até meses antes, estudava em uma escola extremamente hierarquizada, machista, homofóbica e autoritária. No total, sete anos. Poderia citar várias violências promovidas por alunos no Casarão da Várzea, prédio histórico erguido à beira do Parque da Redenção, onde garotos considerados putos eram perseguidos, ridicularizados, menosprezados e, às vezes, apanhavam de outros colegas. No entanto, me atenho à transição entre dois mundos.
Ao sair do colégio, meio perdido, meio acossado, ingressei na UFRGS, sem saber direito como me comportar, o que dizer, de que maneira agir. E decorrido o tempo necessário para afetos deixarem de ser apenas esboço, uma colega passou a me cumprimentar com um beijo na boca seguido de um sorriso e um afago no meu cabelo que tentava achar um rumo, agora que não havia mais sargento a exigir o corte correto. Claro que o esquecimento da bochecha na hora do beijo me espantou, e assim descobri novas possibilidades de gostar e ser gostado. Três décadas depois, não só amigas, mas amigos também me recebem com um beijo. O afeto transbordado me conforta, porém, a depender do ambiente, observo o entorno e imagino o que alguém pode pensar quando um homem me dá um simples e breve beijo na boca. E lamento que ainda passe por isso, como se estivesse no Colégio Militar, lá na nem tão longínqua década de 1980, quando um colega caçoou de mim apenas porque me viu beijar o rosto de um parente do sexo masculino.
O receio de se expor em algum momento já fez ou fará parte da vida de pessoas cuja existência destoe de protocolos e identidades aceitos sob a ordem patriarcal. A comunidade LGBTTI sabe disso. Mulheres sabem disso. Negros sabem disso. Sabemos disso porque somos um país violento e fraturado, cuja história é calcada na agressão. Contra os índios dizimados. Contra os negros escravizados. Contra as mulheres vítimas do machismo e do feminicídio. Contra gays, lésbicas, travestis e pessoas trans que têm sua identidade negada. Contra os opositores de um regime de exceção que fez da tortura uma política de Estado, prática brutal que até hoje não foi condenada no Brasil, a ponto de se eleger presidente um candidato que, sem escrúpulo nenhum, enaltece um dos piores crimes, repudiado em qualquer sociedade que atingiu patamares mínimos de civilidade. Somos um país violento e fraturado que agora mergulha num torvelinho perverso, quase uma distopia, em que governantes se sentem respaldados a censurar obras culturais a partir de seus preconceitos, dogmas religiosos e, sabe-se lá, desejos mal equacionados.
Se comecei lembrando do receio de expor afeto em público, logo derivo para outro medo tão em voga: da censura que volta a perseguir obras culturais produzidas, não por acaso, pelas mesmas pessoas que em algum momento temeram expressar afeto em público; da censura que tenta eliminar narrativas que expressam a vida em sua complexidade e intensidade para além da experiência heterossexual. O temor de medidas abusivas e arbitrárias não é em vão, haja vista a atitude do prefeito do Rio de Janeiro, o pastor licenciado Marcelo Crivella, que em 7 de setembro mandou fiscais percorrerem estandes da Bienal do Livro a fim de recolher obras de conteúdo impróprio. No caso, a história em quadrinhos Vingadores: A Cruzada das Crianças, de Allan Heinberg e Jim Cheung, editada pela Marvel, que estampa em suas páginas o beijo de dois garotos, Wiccano e Hulkling. “A decisão de recolher os gibis teve apenas um objetivo: cumprir a lei e defender a família”, tentou justificar o prefeito em sua cruzada moralista. Após um embate jurídico, o Supremo Tribunal Federal (STF) encerrou a pendenga, impedindo a apreensão das publicações consideradas impróprias por Crivella.
Setembro parece ser o mês emblemático da censura contra obras que referenciam o universo LGBTTI. Em 10 de setembro de 2017, o Santander Cultural encerrou a Queermuseu, em Porto Alegre, por conta do bafejo moralista, raivoso e preconceituoso do Movimento Brasil Livre (MBL). Havia motivos para alguém tecer críticas à exposição, pois nenhum projeto curatorial é isento de debate. Inadmissível era ceder ao ódio, ao arbítrio e à censura, o que de fato ocorreu, prenúncio do quanto ainda pioraria. O precedente aberto foi gravíssimo, pois sinalizou aos moralistas e preconceituosos que eles poderiam esbravejar e ter sucesso no cerceamento da cultura. E no mesmo mês do mesmo ano, houve tentativa de impedir na cidade a apresentação do monólogo O Evangelho Segundo Jesus, Rainha do Céu, no qual a atriz e travesti Renata da Silva Carvalho Franzoni interpreta Jesus, mas um juiz considerou improcedente o pedido feito por um advogado defensor da moral e da fé.
Não podemos esquecer: a covardia, o racismo e a brutalidade contra os dissidentes da heternormatividade sempre estão à espreita, latentes, prontos para vir à tona. O problema é que nos últimos tempos, desde quando a selvageria apelidada de fake news explodiu nos celulares de todos os quadrantes, o mal engrossa seu arsenal de mentiras, moralismo e delírios, criando condições para concretizar atitudes de ódio e censura. Os vis elegeram quem defende a tortura. Luis Fernando Verissimo escreveu que estamos em guerra, e ele está certo. Há uma ação sistemática do governo em atacar e destruir muitas das conquistas que se obteve no frágil processo de redemocratização. As medidas tomadas até aqui, com rapidez e voracidade, e os discursos belicosos agridem o ambiente, a educação, os direitos humanos, grupos minoritários, a saúde, as universidades, a pesquisa, a cultura, o conhecimento. E neste ringue de forças desiguais, o silêncio e a omissão são tão danosos quanto o golpe mais escancarado de quem perdeu o pudor de ser preconceituoso e violento.
Se antes citei o medo, agora reformulo minha fala: não teremos medo. Seguiremos beijando quem quisermos em público. Seguiremos existindo, sem abdicar de nosso modo de vida. Seguiremos criando e escrevendo as histórias que quisermos. A força da palavra se impõe e permanece. Os censores se esfacelam na história e acabam lembrados apenas pelo que são: ignorantes, arbitrários, medíocres, nefastos, desprezíveis, torpes.
E acima deles, um dia prevalece a palavra antes amordaçada. Sempre foi assim, sempre será. A cultura pode ser ameaçada e violentada. Os livros podem ser apreendidos e queimados. A palavra, no entanto, pode ser insurgente. Os iletrados, preconceituosos e brutos, esse coletivo indigno de pessoas que não toleram a diversidade da expressão humana, todos não resistem ao curso da história. Não tardará para serem lembrados como caricaturas de um país doente, emblemas da perseguição à cultura e ao processo de democratização, artífices de um Estado teocrático-miliciano que atropela a laicidade e a democracia conquistadas com a Constituição de 1988.
Presidente, governadores e prefeitos tentam flagelar a cultura. No eco do arbítrio, mais gente se sente autorizada a reproduzir o disparate e a violência contra gays, contra a população trans, contra mulheres, contra negros e contra ambientalistas. Pode ser que consigam alguns estragos, que amealhem apoio, mas jamais domarão o pensamento e a palavra. Pelo contrário, quanto mais obtusos e agressivos forem, mais a cultura se rebela. O pensamento é força indômita que não se verga ao obscurantismo de arremedos de governo.
*Escritor, jornalista e doutorando em Letras (UFRGS)