Em oficinas Brasil afora, Dominic Barter gosta de se apresentar como pesquisador das relações humanas. É uma forma de introduzir seu trabalho, batizado de “desenho de sistemas dialógicos”. Barter se dedica à Comunicação Não Violenta (CNV), área de estudo criada pelo psicólogo norte-americano Marshall Rosenberg há mais de 50 anos. A CNV busca colocar em prática, nas relações cotidianas e nos sistemas sociais, o poder do diálogo e da empatia no aprimoramento da capacidade de conviver e na compreensão de conflitos, mesmo diante de comportamentos e situações coletivas que envolvam dor e sofrimento. Barter foi aprendiz e colega de Rosenberg por 18 anos e já desenvolveu trabalhos em mais de 30 países. Ele mora no Brasil desde 1992 e, a partir da sua experiência nos morros do Rio de Janeiro, desenvolveu os Círculos Restaurativos, abordagem brasileira de Justiça Restaurativa agora presente em mais de 40 países.
A não violência é vinculada a grandes líderes, como Mahatma Gandhi e Martin Luther King. Como a Comunicação Não Violenta (CNV) pode ser aplicada no dia a dia do cidadão comum?
Há tendência de contar a história dos movimentos não violentos como se fossem associados a indivíduos excepcionais. Não reconhecemos que, mesmo nos casos envolvendo figuras famosas, o que estava acontecendo era um movimento, do qual essas pessoas eram simplesmente uma parte. Os líderes vistos como excepcionais são pessoas comuns com fortes sistemas de apoio que possibilitam que ajam com uma coragem que se destaca. O exemplo brasileiro mais famoso internacionalmente quase ninguém aqui ouviu falar, exatamente porque foi realizado por pessoas “normais”. Os trabalhadores da fábrica de cimento Perus, em São Paulo, fizeram uma greve que começou em 1962 e durou sete anos. Eles pleiteavam melhores condições de trabalho. Em pleno governo militar, orientavam sua ação pela proposta da não violência.
Como a CNV entra nas relações cotidianas?
Nas últimas décadas, tantos esforços foram realizados que nunca vamos conseguir mensurar tudo que aconteceu na sociedade para transformar preconceitos do nível interpessoal. Os maiores exemplos são as mudanças na questão de raça, nos direitos civis e na transformação no tratamento das mulheres e das múltiplas formas de amar. A CNV tanto bebe dessas fontes quanto as alimenta.
Esses exemplos são foco de embate.
Há traços complexos entre quem está trabalhando para transformar uma dinâmica de repressão e as pessoas que temem perder, de algum jeito, seu bem-estar. Na visão delas, em um entendimento superficial e medroso, os privilégios de um grupo são ameaçados por essa transformação em curso, quando na verdade é uma contribuição para o bem-estar de todos. Cientificamente, já se sabe que se beneficiar de uma dinâmica que oprime outros faz mal à pessoa, a sua saúde física e psicológica. A CNV ajuda a promover essas transformações sociais de formas que não impactam negativamente em outros.
Nos últimos anos, cresceu no Brasil um clima de polarização que invadiu todas as esferas da vida, a ponto de causar briga entre amigos e dentro de famílias. Qual a origem disso?
A origem está, em parte, na forte resistência que essa transição para liberar pessoas da exclusão e da opressão social tem sofrido. Isso tem acirrado as posições dos dois lados, principalmente em relação à sensação de injustiça diante da forma como o poder é distribuído na sociedade. Com a ascensão econômica e a libertação das necessidades gritantes de simplesmente comer e ter um lugar para morar, as pessoas estão procurando uma participação social cada vez mais ampla. Querem ter a mesma experiência que outros têm. A resistência a esse movimento de maior igualdade tem aumentado e também é uma causa do acirramento de ânimos. Junta-se isso a uma crise econômica e a uma enorme expansão dos meios de expressão por meio das mídias sociais e cria-se uma situação social em que muitas pessoas estão falando, mas poucas estão ouvindo. Há falas mais articuladas, mas em sacrifício da capacidade de escutar e de perceber a humanidade da outra pessoa. Estamos sofrendo isso nas famílias, no trabalho e nos relacionamentos. Prestamos atenção na opinião do outro, mas temos dificuldade de enxergar o ser humano por trás dela.
Como a CNV pode contribuir para que a gente volte a falar de política sem ter o outro como inimigo?
A CNV nos ajuda a focar a atenção não apenas na fala, mas na mensagem por trás dela. Precisamos prestar atenção não apenas no que a pessoa está falando, mas no que ela quer dizer, no que está sentindo e precisando. Isso facilita a descoberta de que, em muitas situações, nossas formas de nos expressar e de ouvir um ao outro não são precisas. A CNV nos ajuda a ter uma escuta inteligente, que procura, entre as palavras, encontrar a pessoa que está buscando se expressar.
Há forte resistência à transição para liberar pessoas da exclusão e da opressão social. Isso tem acirrado as posições dos dois lados. Com a ascensão econômica e a libertação das necessidades gritantes de simplesmente comer e ter um lugar para morar, as pessoas estão procurando uma participação social cada vez mais ampla. Querem ter a mesma experiência que outros têm. A resistência a esse movimento de maior igualdade tem aumentado e também é uma causa do acirramento de ânimos.
Os gaúchos, muitas vezes, fazem questão de ressaltar pontos de divergência, discordância, em relação ao outro. Como o senhor analisa essa característica?
Dentro de um país tão grande e diverso como Brasil, ter uma identidade própria e uma cultura local é algo que muitos querem destacar e defender. Isso é saudável no sentido de querer reconhecer e celebrar uma história de superação de um povo. Ao mesmo tempo, se isso provoca uma redução na capacidade de absorver o diferente e de reconhecer o valor daquilo que não vem do berço, mas vem para acrescentar, pode tornar-se uma limitação.
Essa tensão cresce em relação à política.
A política não é uma briga de pessoas, é uma briga de ideias. E o embate de ideias dentro da esfera democrática é para encontrar o que serve melhor à sociedade, e não aquilo que eu prefiro. Para a política ser dialógica na busca do que melhor serve à sociedade, precisamos ter simultaneamente a defesa daquilo que a gente acredita que seja melhor e a disponibilidade de ouvir e de ser mudado pelo que a gente escuta.
O senhor diz que o brasileiro é campeão em simpatia, mas não em empatia. Pode explicar a diferença?
Simpatia é a energia fraterna com a qual a gente alimenta as relações no dia a dia. Envolve a disponibilidade de rir junto, de brincar junto. E uma qualidade muito bonita de acolhimento quando o outro não está bem. É uma receptividade de alguém pelo fato de essa pessoa estar passando por uma situação difícil, que é implicitamente considerada imutável. A simpatia é maravilhosa, mas é passiva. Oferece consolo para aquilo que não podemos mudar. Já a empatia é transformativa. Em vez de dar colo, a empatia junta forças. Ela oferece apoio para a capacidade de mudar a situação. Empatia é esse foco de atenção ao outro que permite liberar a imaginação, revelar o próximo passo, energizar para uma ação transformativa.
Como o senhor avalia este momento do país, que convive com um fascínio por armas e com a ideia de que o cidadão comum vai resolver seus problemas com elas ao mesmo tempo em que se choca com episódios como o do músico fuzilado por militares no Rio?
As pessoas precisam ter condições de segurança. Se você não quer que a população ande armada, tem de oferecer alternativas viáveis. Está muito claro pelas pesquisas que armar a população significa aumentar consideravelmente o perigo e o número de mortes. Estatisticamente é mais perigoso ser assaltado portando arma do que desarmado. Mas a sociedade não está segura. A população prisional aumentou 700% nas últimas duas décadas, e o Brasil já tem a terceira maior população carcerária do mundo. E ninguém está se sentindo mais seguro. A orientação do sistema de Justiça pela punição não está funcionando. Para oferecer uma alternativa real a essa tentativa de se armar, precisamos de uma profunda reavaliação de como estamos praticando a justiça no país e de como criar uma comunidade mais segura. A não violência tem muito a ajudar no entendimento de quais são os elementos necessários para criar sistemas restaurativos, que respondem ao conflito por meio de um viés dialógico.
A política não é uma briga de pessoas, é uma briga de ideias. E o embate de ideias dentro da esfera democrática é para encontrar o que serve melhor à sociedade, e não aquilo que eu prefiro. Para a política ser dialógica na busca do que melhor serve à sociedade, precisamos ter simultaneamente a defesa daquilo que a gente acredita que seja melhor e a disponibilidade de ouvir e de ser mudado pelo que a gente escuta.
Poderia descrever esse processo?
O Rio Grande do Sul é um dos Estados pioneiros na criação de formas dialógicas de responder a conflitos dolorosos e violentos. Há experiências ocorrendo desde 2005, no Judiciário, em escolas e em entidades da sociedade civil. São processos pelos quais as partes envolvidas em um conflito podem se encontrar dentro de um ambiente seguro para promover um diálogo. Ali, cada uma delas pode descobrir o que aconteceu, o significado do que o outro estava almejando no momento em que o conflito aconteceu, e fazer um plano concreto de reparação de danos e de restauração da segurança e do bem-estar de cada um para promover uma reintegração de todos na convivência normal. O Brasil inova nessa área desde os anos 1990, a partir da minha experiência no Rio. Há evidências aqui e no Exterior da eficácia dessas experiências em reduzir a reincidência, aumentar a segurança comunitária e criar uma maior experiência de segurança para a população.
Como o senhor analisa a repetição de ataques armados em escolas no Brasil?
A área da educação é uma das mais sofridas no país. Tenho trabalhado bastante em escolas e vejo um grau de sofrimento muito assustador. Depois dos profissionais da área prisional, os professores são uma das categorias que mais solicitam intervenção psiquiátrica. Sofrem de depressão e faltam ao trabalho por causa de doenças. É inevitável que esse sofrimento caia sobre os alunos. Para muitos jovens, a escola é a primeira experiência profunda de sofrimento social. É onde descobrem o racismo, o sexismo e o bullying, além de que sua fome orgânica de aprender é desconsiderada em troca de engolir dados sem uso criativo ou prática evidente, simplesmente para passar numa prova. Há também um descompasso crescente entre a estrutura da escola e o ritmo das transformações na sociedade. Esse cenário aumenta as possibilidades de conflito e, quando os colégios não sabem lidar com isso de forma dialógica, mas apenas por meio da punição e da imposição de regras, muitos jovens saem da escola com uma experiência profundamente sofrida e sem expectativa de que a vida voltará a ser alegre.
Essa é a causa dos ataques?
Tragicamente, alguns têm decidido registrar esse sofrimento na forma de protesto mais desesperada possível, que mostra uma tentativa de resgatar algum poder de ação, de autonomia, cometendo esses crimes horrorosos. É um grito de desespero, de não ser ouvido, como tantas vezes é a violência social. O que é trágico é que os atiradores deixam muito claramente, em seus diários ou manifestos online, evidências de que tentaram expressar esse desespero de formas menos letais antes, mas não foram ouvidos. No caso da escola de Suzano (episódio de abril deste ano), a gente sabe agora que os jovens escolheram muito bem em quem atirar. Uma mulher que trabalhava lá havia muitos anos e era querida foi poupada. Há um dado a ser estudado: são meninos que matam, e eles matam na maioria meninas.
Por quê?
Muitos jovens vivem uma profunda desorientação perante à transformação dos papéis de gênero na sociedade. Os meninos são criados para serem homens de uma forma que muitas mulheres não toleram mais. Isso desorienta os jovens profundamente, cria uma ideia de que nunca vão poder estabelecer relações amorosas. Esse tema é muito complexo, mas é evidente que o acesso a armas aumenta muito a letalidade desses episódios. É só comparar o que acontece nos EUA e o que acontece na Europa, onde a população não é armada. Mas a raiz do problema não está no acesso a armas, e sim na maneira como a gente cria espaços em que jovens podem crescer, se expressar, serem ouvidos e apoiados a se realizar de forma harmoniosa com seus desejos e com a sociedade. A gente não está fazendo isso.
O senhor está em tratativas com a Secretaria Municipal de Educação da capital gaúcha para implementar na cidade um projeto semelhante ao Espaço Beta, localizado no Rio de Janeiro e do qual o senhor é cofundador. O princípio educativo dessa iniciativa é orientar o aprendizado dos alunos a partir de seus próprios desejos – seja criar uma horta, costurar ou falar outro idioma. Em Porto Alegre, a escola deve ser de Educação Infantil e anos iniciais do Ensino Fundamental. Fale um pouco desse projeto.
Estou muito grato à Secretaria Municipal de Educação e aos meus parceiros pela abertura, curiosidade e compromisso deles com a inovação. Não é fácil fazer educação de uma forma que cuida e respeita o magistério e os jovens, que procura sustentar a curiosidade nata que eles têm sobre o mundo, mas é um dos trabalhos mais gratificantes que conheço. É preciso criar escolas verdadeiramente libertárias, nas quais os jovens possam expressar o que eles têm, de forma única, para contribuir pelo futuro.
Muitos jovens vivem uma desorientação perante à transformação dos papéis de gênero. Os meninos são criados para ser homens de uma forma que muitas mulheres não toleram mais. Esse tema é complexo, mas é evidente que o acesso a armas aumenta a letalidade de episódios (de violência nas escolas).
O senhor já desenvolveu trabalhos em mais de 30 países. O que encontrou de comum entre eles?
Comum é o desejo das pessoas de viver em paz e em harmonia com o outro. Isso é universal. As pessoas querem segurança, liberdade, respeito, acesso a recursos materiais mínimos para viver, sentido nas suas vidas. Querem justiça e a possibilidade de expressar o que é único a cada um, seu jeito de amar, vestir, rezar, comer e de se expressar culturalmente. Todos experimentam um intenso sofrimento quando esses desejos são reprimidos por indivíduos ou condições sociais. E estão dispostos a lutar por essas necessidades, mas, muitas vezes, estão desprovidos de mecanismos eficazes para travar essas lutas sem acidentalmente se tornarem fontes da repressão dos outros, exatamente o que não querem para si próprios. Essa é a grande tragédia. Em nome desses valores universais, oprimimos pessoas que compartilham dos mesmos anseios. Marshall Rosenberg falou que a violência é a expressão trágica de necessidades universais não atendidas. Minha experiência tem comprovado a sabedoria dessa observação.
O senhor trabalha com infratores e vítimas, violência escolar e familiar, comunidades devastadas por guerras e com a violência no Rio. Como cuida de si?
A liderança pelo sacrifício é contraproducente. Viver bem e viver bem com os outros não pode ser feito de uma forma que nos custe o prazer e a alegria de viver. Para fazer o que faço, esse encontro com muitas dores e sofrimentos, é essencial ter um sistema de apoio. É essencial ter pessoas para quem posso virar quando estou triste, desanimado, perdido ou sobrecarregado. Simplesmente quero a companhia de alguém disposto a me ouvir. Às vezes, é bom ouvir um conselho de alguém sábio. Mas na maioria das vezes nem conselho eu quero. Quero aquilo de mais primário que amigos podem dar um ao outro: a presença, uma escuta carinhosa, amorosa. Isso me ajuda a lembrar que tenho a força para lidar com as situações. Não é todo dia que os resultados dos nossos esforços são suficientes. Procuro sempre parar para celebrar e agradecer aquilo que está acontecendo na minha volta e que me lembra das belezas da vida. A gratidão é o combustível secreto de quem trabalha pela não violência.
Que livro o senhor daria para o presidente Jair Bolsonaro ler?
Em geral prefiro não fazer sugestões sem antes receber um pedido, ainda menos a alguém tão ocupado quanto um presidente. Noto que aconselhar sem que o outro peça pode gerar resistência. Bolsonaro se descreve como um homem de fé, e muitas tradições religiosas oferecem sabedoria profunda acerca de não violência, inclusive na política. Certamente encontra-se toda a Comunicação Não Violenta no Novo Testamento. Mas a resposta que mais faz sentido no contexto desta entrevista seria recomendar o livro do meu mentor Marshall Rosenberg, Comunicação Não Violenta. Ele ilustra décadas de experiências que Marshall teve ao redor do mundo respondendo não violentamente a desafios sociais e pessoais dos mais cabeludos.