Dono de uma Road King, Silvano de Alencar Machado teve mais de 20 Harley-Davidson nos últimos anos. Agora está de olho em uma Road Glide Special.
Diego Scotton pegou a estrada para Cambará do Sul só porque ouviu que faria -2°C. Levou a filha, que subiu na garupa animada com o convite “para pegar frio”.
Já Valcir Couto da Silveira meteu sua moto em perigosas estradas de rípio (um tipo de pedregulho comum na Patagônia) e enfrentou ventos de quase 100 km/h para chegar em um posto de correio minúsculo no Ushuaia. Não satisfeito, viajou para o Alasca na sequência.
Você tem dificuldade para entender isso tudo?
— Quem é motociclista sabe — responde Valcir.
Realização pessoal, ânsia por aventura e sensação de liberdade são algumas das máximas do motociclismo e ajudam a transformar um meio de transporte em estilo de vida – bordão amplamente utilizado pela fabricante da moto de Silvano, inclusive. Consequentemente, alimentam um mercado que está voltando a acelerar. A venda de motos no Brasil começou 2019 com alta de 17,8% em janeiro (90.722 unidades), de acordo com a Federação Nacional da Distribuição de Veículos Automotores (Fenabrave). Isso mostra a tendência de recuperação do setor, que retomou o crescimento em 2018 depois de quedas seguidas desde 2012.
E não é apenas sobre duas rodas que essa economia gira: o catálogo que a responsável pela boutique da Harley guarda no balcão da loja Iesa, em Porto Alegre, tem nada menos que 491 páginas, com produtos que vão de mesa de sinuca Harley a palheta de guitarra Harley. Claro que não tem tudo isso disponível para a venda, mas se você não tiver R$ 43,5 mil para sair do estabelecimento com uma Iron 883, ou R$ 103,9 mil para uma Ultra Limited, pode levar para casa um boné de R$ 259 ou uma camiseta de R$ 169.
— O meu roupeiro não tem roupa que não seja Harley — conta o vendedor Zandor Pires, exibindo relógio, camisa e cinto da Harley.
Lojas de grandes marcas passam a ser, também, um local de encontro para motociclistas. As concessionárias da Suzuki e da Triumph preparam cafés da manhã para os clientes aos sábado na Capital, servindo de ponto de partida para passeios de moto.
Já a Harley-Davidson tem o que, sem modéstia, chama de “o melhor clube de motociclismo do mundo”. Em Porto Alegre, o Harley Owners Group (HOG) é mantido pela Iesa. Os participantes pagam uma anuidade de US$ 40 ao HOG, enviada aos EUA, e recebem revistas, bótons, bordados para costurar na jaqueta. Também participam encontros nacionais, podem se inscrever em cursos de mecânica básica e de curvas em autódromo. E, é claro, fazem passeios exclusivos de motos Harley.
Mas, se no motociclismo tem rolê Nutella, também tem rolê raiz. Há encontros, aniversários de motoclubes e acampamentos de motociclistas praticamente o ano inteiro no Rio Grande do Sul.
Apenas neste mês de março, são oito os eventos do calendário da Associação dos Motociclistas de Rio Grande do Sul (AMO). Essa associação tem registro de 974 motogrupos, motoclubes e motocasais no Rio Grande do Sul – o número não é preciso, porque não é possível saber quais deles já não existem mais, e a AMO está em processo de recadastramento.
Ali, todas as tribos de motoclistas se encontram: os proprietários de custom, que é uma moto mais estradeira e estilizada; de motos trail, que podem andar tanto em asfalto quanto em estradas de chão; a galera das motos esportivas, de maior velocidade, que você normalmente vê paramentada com macacão, bota e luva; e outras ainda mais exóticas, como a dos tricicleiros.
Ironicamente, no encontro Marau em 2 Rodas, os veículos de três rodas eram os que mais chamavam atenção na manhã de um sábado de fevereiro. Adaptados com pneu de avião, farolete de Harley, motor de Santana, painel de Tempra, caixas de som e adesivos imitando fogo, os triciclos pertencem ao vigilante Rodrigo Fernandes Moreira, 24 anos, e a seu pai, o metalúrgico Luiz Carlos Affonso Moreira, 60 anos.
— Ser diferente é que é o bom — alega o jovem.
No parque municipal de Marau, no Norte do Estado, centenas de visitantes eram recebidos para a 17ª edição do encontro ao som de clássicos de Creedence, Guns ‘N’ Roses e Bon Jovi, mesclados ao barulho das motos sendo aceleradas sem sair do lugar – embora os organizadores de encontros se esforcem para coibir a famigerada “zoeira”. Essa tradição se repete em todos os eventos: o motociclista estaciona sua moto em algum lugar à mostra e passa a caminhar admirando as outras, como se fosse uma exposição.
Mas a moto é o veículo que mais mata no país, e pode acontecer de os participantes serem lembrados disso. A caminho de Marau, um motociclista morreu na RS-324, em Casca. Conforme o Comando Rodoviário da Brigada Militar, o homem perdeu o controle da Kawasaki, saiu da pista e bateu contra uma árvore.
O comerciante Fabio Junior Pereira, 38 anos, vinha logo atrás. Ele e os amigos de motoclube de Serafina Corrêa chegaram a acionar os Bombeiros, mas não tinha mais o que fazer. Mesmo sem conhecer a vítima, ele chorou.
A tragédia não cancelou a ida encontro, mas os fez repensar a conduta no trânsito. Motociclismo também flerta com o medo, por si mesmo ou por quem se ama.
— Meus dois filhos, de 19 e 20 anos, têm carteira de moto, minha esposa também. Eu sempre saio pedindo a Deus que não quero ver nada disso com alguém da minha turma — diz Fabio.
A vida nos encontros de motos
Quando começou a participar de eventos de moto, há 28 anos, o peruano Welinton Perera Macedo estendia um colete de couro sobre seu triciclo e ali vendia correntes, brincos e acessórios para tirar a grana do combustível.
Aos 59 anos, Welinton segue levando seu colete de encontro em encontro. Mas agora ele vende as bijuterias em tendas de quatro metros quadrados, junto com bandana de caveira, camiseta do Metallica, do Iron Maiden, do Guns, chaveiro, retalho bordado para costurar em jaqueta e outras dezenas de produtos.
Calcula que já tenha conhecido 12 Estados dessa forma. Antes de ir a Marau, sua família passou por Navegantes (SC) e Tramandaí (RS) e, na sequência, iriam a Indaial (SC), Xaxim (SC), Dionísio Cerqueira (SC), Rio Verde (MS) e Cabo Frio (RJ).
O valor que tira fica em torno de R$ 1,3 mil por encontro.O peruano reclama que muita gente tem a impressão errada do motociclista, talvez em razão das roupas escuras e por vezes com caveiras e demônios que ele mesmo vende.
— A vestimenta que a gente usa simboliza uma forma de tirar o estresse. As pessoas não sabem que debaixo do colete tem gente com a mentalidade do bem — explica.
— Motociclismo é atitude e respeito.
Welinton quer se aposentar em dois anos, vai comprar de novo um triciclo e começar a ir nos encontros “para ver os amigos”. E, depois de criar sua família em eventos do tipo, talvez até pegue alguma estrada mais longa. O filho Martin de Jesus Perera Gallego, 20, já está juntando dinheiro para comprar uma moto, com o sonho de atravessar a fronteira com o pai para visitar o Peru.
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