A legalização da maconha no Uruguai completa quatro anos e não é ponto pacífico no país, tampouco está alheia às controvérsias e à necessidade de se apararem arestas importantes. Esse olhar crítico — não contra — do médico psiquiatra Gabriel Rossi conduziu a explanação que fez no painel dedicado à experiência uruguaia da regulamentação da droga no Simpósio em Álcool e Outras Drogas. O evento, promovido pelo Centro de Pesquisa em Álcool e Drogas (CPAD) do Hospital de Clínicas de Porto Alegre e pela Secretaria Nacional de Políticas Sobre Drogas (Senad), foi realizado no anfiteatro do hospital, segunda (2) e terça-feira (3) em Porto Alegre.
Rossi participou como representante do Ministério da Saúde do Uruguai e, apesar de não trazer dados atualizados sobre o consumo da maconha após a nova legislação, o especialista em psiquiatria infantil não escondeu que é um analista atento da implementação, defendendo fiscalização mais intensiva e uma idade maior do que os 18 anos previstos para a permissão do uso. Isso porque sua dedicação ao tema já lhe fez topar com pesquisas científicas que atestam prejuízos à saúde de adolescentes causados pelo consumo da maconha nessa fase da vida.
— Os danos maiores disso não batem à porta dos hospitais, como em uma crise de abstinência, como muitos pensam. São situações ligadas ao rendimento desses adolescentes que passarão em silêncio — disse o psiquiatra.
País em que a população é de pouco mais de 3,2 milhões de habitantes e com uma das mais baixas taxas de fecundidade do continente, preservar a juventude é um dever do Estado uruguaio. A legalização da maconha ainda é discutida com afinco, especialmente porque precisa disponibilizar logo dados efetivos do efeito disso nos hábitos de consumo da população. Rossi entende que só com pesquisa se pode tomar uma decisão responsável quando se trata de qualquer droga e ressaltou que a política adotada no Uruguai para a cannabis veio acompanhada do rigor que já havia caracterizado as medidas antitabaco e antialcool do país.
A regulação do mercado também foi um revés ao narcotráfico, que tinha na venda da maconha cerca de 50% de seus lucros no território vizinho, mas ainda há uma parcela da população que se abastece dessa fonte. Outro ponto positivo é que o desgaste jurídico em processos envolvendo consumidores se reduziu. De 2006 a 2009, 43% das pessoas abordadas pela polícia com drogas tinham entre 0,1g e 9g de maconha, quantidades pequenas.
Atualmente, existem três maneiras para consumir maconha no país vizinho legalmente. Uma delas é como autocultivador, com limite de seis plantas por lar. Neste grupo, já são mais de 8,6 mil pessoas registradas. A outra é nos clubes, em que o usuário se associa e paga uma espécie de ingresso, que pode chegar a UU$ 500, com limite de 99 plantas e até 45 integrantes, e também nas farmácias, onde se pode adquirir até 40 gramas por mês — são apenas 14 estabelecimentos que dispõem do produto no país, sendo sete em Montevidéu. Em todas as modalidades, é exigido ter mais de 18 anos e nacionalidade uruguaia ou residência permanente no país.
— Ainda assim temos uma parcela de usuários que estão no que chamamos de mercado cinza, abastecido pelo autocultivador ou por aqueles que compram nas farmácias. Não sabemos nada sobre eles, podem ter qualquer idade — diz Rossi.
No intervalo de sua palestra no Simpósio em Álcool e Outras Drogas, em que também participou de uma mesa-redonda sobre experiências na América Latina a respeito das drogas, Rossi conversou com a imprensa sobre a experiência uruguaia.
O senhor demonstrou preocupação com o consumo de maconha entre adolescentes e defende que seja usada só por maiores de 21 anos. A lei uruguaia foi aplicada sem considerar o que pode aplacar esse consumo nessa faixa etária?
O consumo de maconha de 2000 a 2013 entre alunos do Ensino Médio cresceu de 9% para 17%. Isso foi antes da regulamentação. Não temos números, uma pesquisa posterior à lei. Então, é muito difícil falar sobre o que fazer se não temos esses dados. Não sei por que ainda não temos esses números, mas a pesquisa é feita a cada dois anos. Estamos falando, agora, de trabalhar com a responsabilidade dos pais no consumo geral (de drogas) e da maconha em particular. Acho um bom caminho, mas, muitas vezes, o sistema político interpreta que fazendo uma campanha nos meios de comunicação é o bastante. Acho que para trocar condutas tem de fazer algo mais. A sensibilização é necessária, mas não muda condutas.
Do ponto de vista médico, há muitas evidências científicas sobre o que a maconha fez no cérebro de adolescentes e não fez no de pessoas com 21, 23 anos. A memória recente está muito ligada ao hipocampo, e a maconha impacta na memória recente. O adolescente está estudando, mas não guarda detalhes, por exemplo. Temos de sair da ideia de que a maconha mata, mas ela traz problemas do ponto de vista da memória dos adolescentes e também nos reflexos. Há informações — até resisto um pouco a elas — de que se você consome maconha antes dos 15 anos, tem queda no QI. Resisto um pouco a isso. Não sou a favor ou contra o consumo, sou a favor de que o início (do consumo) seja o mais tarde possível. O certo é que se não trabalharmos a respeito dos adolescentes, teremos inclusive um problema econômico silencioso, porque a capacidade deles diminui em um momento central da vida, e o Uruguai é um país de velhos, com a infância e a adolescência como bens escassos.
Temos de sair da ideia de que a maconha mata, mas ela traz problemas do ponto de vista da memória dos adolescentes e também nos reflexos.
Há um risco de que a regulamentação tenha aumentado o consumo entre adolescentes?
É possível, porque há o que chamamos de mercado cinza: pessoas que estão no mercado regulamentado fornecendo a outros. O governo estima que cada autocultivador repassa maconha a outras duas pessoas, mas não sabemos nem a idade dessa pessoa. Não sabemos mais porque não temos números. Mas entre os adolescentes há baixa percepção de risco sobre a maconha, e o agravante de acharem que se está legalizado, não tem problema.
O senhor é contra a regulamentação?
No meu país, se você critica é contrário, e isso gera bandos de pró e anticannabis. Não me sinto antinada, sou pró-saúde, e há muitos anos trabalho com o tema drogas. Não sou contra os mercados regulados, sou crítico da forma de implementação do mercado regulado de cannabis. Acho que a fiscalização dos clubes e dos autocultivadores é muito fraca no Uruguai.
Como estão lidando com os turistas que acham que o Uruguai se tornou o paraíso dos maconheiros?
A lei do Uruguai é para uruguaios, não é para turismo canábico. Isso é parte da lei, mas eu sei que muito turista vai para o turista canábico e que se faz negócios nesse tema. Do ponto de vista da legislação, é ilegal. O espírito da lei é contra o turismo canábico, quando a estávamos discutindo, lembro de que pensamos que não queríamos ser a Holanda da América do Sul.
Conseguiram?
Não sei, não temos dados, mas você me disse que ocorre, eu sei que existe. Qual a dimensão? Não sabemos. O turista não pode (consumir), mas o que acontece, eu não sei.
A lei do Uruguai é para uruguaios, não é para turismo canábico. Isso é parte da lei, mas eu sei que muito turista vai para o turista canábico e que se faz negócios nesse tema.
O Uruguai tem sentido de alguma forma pressão de grandes indústrias em busca desse mercado consumidor de maconha?
Não, porque o Uruguai tem uma forte tradição de controle do Estado. Não notamos isso neste sentido. As plantações legais estão com duas empresas nacionais e temos segurança nelas porque investigamos. Havia 25 empresas buscando essa licença, apenas duas foram selecionadas. A presença do Estado no Uruguai é forte e é um orgulho dos uruguaios. A luz, o ensino, a água, a principal telefônica são públicos e defendemos muito isso como país.
Sei que não há um dado científico, mas por que a cannabis é tão melhor aceita quando é para fins medicinais do que quando se fala em uso recreativo? Associa-se o fim recreativo à delinquência?
Talvez, não sabemos a razão. O uso medicinal tem 70% apoio, mas a cannabis para fim recreativo tem uma certa aceitação de pouco mais de 50%, mas acho que talvez seja desconhecimento sobre o consumo e também somos muito velhos, né? Mas a razão íntima não sabemos. Mas existe essa diferença importante.
Cogita-se voltar atrás na regulamentação?
O presidente Pepe Mujica, que governava quando a lei foi aprovada, falava que nós deveríamos ter capacidade de avançar e de retroceder. Acho que enquanto não tivermos números e pesquisas, não podemos fazer nenhuma validação séria. Não posso saber se foi bom ou ruim sem números. Há vontade política para os dois lados. Voltar atrás é possível, sim, mas acho que tudo tem etapas.
O senhor falou que não se pode usar o exemplo do Uruguai para buscar a legalização no Brasil ou em qualquer parte do mundo. Mas por aqui sempre se usa o tamanho dos países como um argumento entre opiniões contrárias à regulamentação. O senhor acha que o fato de o Uruguai ser um país pequeno facilitou o processo?
O Brasil é um continente, enorme. Não sei nem como pensar em uma lei nacional no Brasil, mas no Uruguai é certo que as dimensões fazem muitas políticas possíveis, talvez na possibilidade dessa política também. Um país muito grande como o Brasil, o Canadá está fazendo algo semelhante. Acho que se pode olhar para eles e ver qual a experiência que estão construindo. Daqui a uns anos, teremos números do Canadá, do Uruguai, de outros países regularizados e daqueles locais onde é liberado para podermos comparar. No Ocidente, o tema maconha está gerando muitos debates.