— Hoje acordei e fiquei pensando: doutor. Será que é isso mesmo? Ainda não caiu a ficha.
As palavras de Dorival Gonçalves Santos Filho, 35 anos, na sexta-feira (11), um dia após receber o título de doutor em Linguística pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), resumem o sentimento do professor que aprendeu a ler em casa com a ajuda da mãe e por meio dos livros que achou no lixo.
Dody, como é chamado, cresceu em meio ao lixão na cidade de Piedade (SP), a 90 quilômetros da capital paulista. Era de lá que a mãe tirava o sustento da família e foi onde Dorival começou a trabalhar muito cedo ao lado dos irmãos. Ainda pequeno, ele se apaixonou pelos livros e ficava encantado ao ouvir as histórias que a mãe contava. Foi dona Crélia, a maior incentivadora do filho, quem sempre deu forças para Dorival continuar e chegar aonde chegou.
— Muitas vezes eu pensei em desistir, desde a época da graduação. Eu não tinha celular para conversar com a minha família, mandava carta pra minha mãe falando que não sabia se ia conseguir. E ela dizia "claro que vai, eu vou ver o que posso fazer pra te ajudar". A gente já era uma família pobre, humilde, e ela ainda tentava dar um jeito pra me ajudar.
Na última sexta, quando Dorival conversou com a reportagem, ele ainda nem tinha conseguido falar com a mãe, que mora em Guaramirim, no norte de Santa Catarina, e que não pôde ir para Florianópolis por problemas de saúde.
— É um momento de dedicação para minha família, pois sem eles essa caminhada não seria possível. De uma forma ou de outra, eles sempre me ajudaram.
Para Dorival, além da vontade e do incentivo da mãe, outros fatores o ajudaram a chegar até aqui. O fator determinante, segundo ele, foram as oportunidades e incentivos do governo.
— Meritocracia pra mim não funciona, porque é uma batalha, é uma disputa muito desleal. Você acha que eu, um menino que veio do lixão, vou estar em igualdade com outro menino que não precisava trabalhar, que só estudava, que podia fazer uma escola de idiomas? É desleal, a força de vontade não faz tudo. Pra mim foi uma soma de fatores, mas foi só com os programas sociais que eu consegui voltar a estudar, porque não precisava trabalhar no lixão o dia todo — avalia.
Ir à escola era importante, mesmo assim por sete anos ele precisou largar as carteiras porque não dava conta da dupla jornada. Foi quando a mãe passou a receber o Bolsa Família que Dody conseguiu voltar à sala de aula. E foram os professores, impressionados com o conhecimento do menino, que sugeriram que Dorival cursasse Letras, devido ao interesse por literatura.
Ao terminar o Ensino Médio, Dorival foi aprovado no vestibular em Letras (licenciatura em português e francês) da Universidade Estadual Paulista (Unesp), em Assis (SP). Se formou em 2010 e foi para Guaramirim, para onde a mãe, os quatro irmãos e os sete sobrinhos haviam se mudado.
A biblioteca
Em meio ao lixo, entre papéis, plásticos, cobre e prata, o maior tesouro para Dorival eram os livros. Ainda sem saber ler, ele catava todos e levava para casa. Foi assim que chegou a ter um acervo com cerca de 3 mil obras. Eram romances, livros didáticos, de medicina, de literatura. Muitos dos exemplares só tiveram a importância reconhecida anos mais tarde. Dentre os títulos, está Vidas Secas, de Graciliano Ramos, que o acompanha há mais de uma década.
O acervo não pôde ir para Santa Catarina. Apenas 70 vieram na mudança e, a maioria, está na casa da mãe. Hoje, os livros são usados pelos sobrinhos. Mas o amor pela leitura não diminuiu, ao contrário, só aumenta.
— Sempre, no pouco tempo que eu tenho, estou lendo.
O sonho distante
E foi assim, entre uma dificuldade e outra, todas superadas, que Dorival realizou seu sonho mais distante, o de ser professor. Enquanto achar cobre e prata, os tesouros em meio ao lixo, era o objetivo maior, Dody nem pensava nessa profissão como algo alcançável.
— Eu admirava muito, ficava pensando, mas meu sonho mesmo, na época do lixão, era ter um emprego formal, porque queria ter um trabalho menos sub-humano.
Assim que chegou em Guaramirim, começou a lecionar em escolas públicas. Mas a vontade de estudar seguia grande e Dorival ingressou no mestrado em Linguística na UFSC. Do mestrado ele foi direto para o doutorado. Foram mais quatro anos de dedicação total aos estudos.
No início deste ano, Dorival começou a dar aulas na Escola Municipal Alfredo Rohr, no Córrego Grande, onde os alunos nem imaginam a história do seu professor, que, com jeito tímido, raramente fala sobre sua trajetória.
Novos horizontes
Quem pensa que Dorival já realizou todos os sonhos, se engana. O jovem rapaz, que completa 36 anos no final do mês, ainda sonha em conhecer a França e continuar estudando. Quem sabe um pós-doutorado?
Outro projeto que está na lista de Dody é a sua autobiografia. Ainda não tem prazo ou projeto de publicação, mas ele já está escrevendo.
— Vou contar minha história, quem sabe talvez sirva para alguém como um exemplo.