"Beber! E olhar no Twitter onde tem blitz." O primeiro verso de Vida Corrompida, parodiado do clássico "Viver! E não ter a vergonha de ser feliz", de Gonzaguinha, serve de resumo da forma como Marcelo Adnet faz humor. Atual, brasileiro e atento ao cotidiano, ele provoca riso e – no melhor dos casos, espera o autor – uma reflexão em quem assiste. A missão é fazer as pessoas perceberem que, ao rirem dessa e de outras piadas, elas riem delas próprias. Embora nunca tenha exercido a profissão, Adnet atribui o bom olho para o "calcanhar de aquiles" de cada um à formação em Jornalismo (pela PUCRJ). Nesta entrevista, às vezes descontraída, às vezes séria, sobre temas como a política e os limites do humor, ele fala sobre suas inspirações e principais alvos. No último Adnight Show, sobrou até para o "umbiguismo" dos gaúchos.
Em entrevista recente, falando sobre a atual situação política do país, você afirmou que "o humor ganha importância em um momento confuso". Qual é o papel do humor no Brasil de hoje?
Essa minha afirmação veio depois de ouvir uma frase interessante de um cientista político: "Bom, se eu, que estudei, fiz mestrado e doutorado em Ciência Política, não estou entendendo nada, imagina quem é leigo!". Em um momento em que as coisas já não fazem sentido, em que a lógica da ciência já não dá mais resposta nenhuma, eu acho que o humor é uma boa saída. Uma boa forma de a gente falar sobre esse assunto (política). Tentar debatê-lo e entendê-lo. Porque as coisas que estão acontecendo são tão surreais que só o humor para explicá-las. Esses dias vi na TV a história do (ex-governador do Rio) Sérgio Cabral e o anel de R$ 800 mil, que ele ganhou do Cavendish (Fernando Cavendish, empreiteiro da construtora Delta), em Paris, para a esposa dele. Vendo aquilo, só me vinha à cabeça: "O anel que tu me deste era vidro e se quebrou". Quase liguei para o (humorista) Marcius Melhem para sugerir que o Zorra fizesse uma paródia, já que o programa fala de cotidiano e consegue gravar em poucos dias, dando uma resposta rápida ao que está acontecendo. Quando acabou a reportagem sobre o caso do anel, tudo pareceu tão surreal que, em vez de ficar raivoso, indignado, só consegui pensar em humor, em paródia. A gente está sem entender nada e sem confiar em quase ninguém. Todo brasileiro se sente um pouco passado para trás, inseguro. Quero acreditar que o humor ajuda a digerir e também a transformar essa situação.
Não parece a você que o momento político é subaproveitado em termos de sátira? Você não sente falta da crítica semanal que vinha do Casseta & Planeta, por exemplo?
Sinto, sim. Concordo com isso. Mas, ao mesmo tempo, falando sobre o meu trabalho e o dos meus colegas atualmente, a gente muitas vezes é refém do tempo. O Adnight Show, por exemplo, é todo gravado com antecedência. No Tá no Ar ou no Zorra, a gente luta para ter um espaço na semana em que o programa vai ao ar para gravar algum acréscimo. É uma manobrinha para tentar ficar em cima do lance. O Zorra tem conseguido, assim, apresentar algumas paródias. Já o Tá no Ar aposta no genérico. Quando o Welder Rodrigues faz o "foca em mim", aquilo não é o Marcelo Rezende, não é o Datena: são todos ao mesmo tempo. Ele vai no genérico, não no específico. Acho que o momento político, cada vez mais, merece paródias. Porque elas são reflexões. Tem espaço para mais.
Dá para perceber que o Tá no Ar não "bate" apenas de um lado. Se tem o militante de esquerda que interrompe a transmissão criticando a Globo, tem também, em seguida, uma paródia como a do Chico Buarque de Orlando. Você tem esperança de que, ao reconhecerem o que têm de ridículo, as pessoas que hoje estão divididas em um ambiente polarizado voltem a se unir?
De fato, há esse fenômeno que é o das pessoas se dividindo em times: polícia ou ladrão, esquerda ou direita. E qualquer traço de opinião já é suficiente para definir em que lado se está. Se o cara é barbado e humanista, pronto: é comunista. Se não, é fascista. Chegamos em um momento em que a classe política brasileira basicamente conspira contra o povo. Faz votações e passa leis descaradamente impopulares. E, em vez de a população se unir para cobrar, ela se dividiu também. É um fenômeno social que acontece em tempos de crise. Foi assim na Alemanha nazista, guardadas as proporções. Acharam um culpado no outro. Também aconteceu no Azerbaijão na década de 1980, quando o povo saiu às ruas para matar os armênios. Chegamos em um momento de agressividade, de as pessoas gritarem umas com as outras, se ameaçarem... É muito triste. As pessoas se dividindo e se culpando. Quando a gente mostra um humor com dois lados – na verdade, diversos lados –, é para mostrar que não faz sentido uma luta de uns contra os outros. E que não faz sentido também defender cegamente um time, apenas, já que todos eles em algum momento jogam contra nós.
No que você acredita que o seu humor é brasileiro?
Quando se fala de humor, a gente está falando, em primeiro lugar, de uma subjetividade. O humor é recebido de forma subjetiva. Tem gente que olha para o Chico Buarque de Orlando e pensa que é uma homenagem à direita. Tem gente que acha que é uma sacanagem. Mas cada país tem uma marca, um estilo. Acho que sou brasileiro porque a minha inspiração é no brasileiro. É a partir do ponto de vista brasileiro. Além disso, sou brasileiro no momento em que reciclo as ideias, mais ou menos como um trabalho de repentista. O humorista é um cara sarcástico, ácido, que tira sarro mesmo quando está incomodado. Mesmo que esteja afundado. É como um artista de rua, um cara que pega seu instrumento e resume o dia. Em vez de pensar demais e chegar produzido, tem essa coisa mambembe, de misturar elementos. No mesmo programa, há paródias sofisticadas e quadros que são só engraçados, mesmo.
Em um momento em que as coisas já não fazem sentido, o humor é uma boa saída. Todo brasileiro se sente um pouco passado para trás, inseguro. Quero acreditar que o humor ajuda a digerir e também a transformar essa situação.
MARCELO ADNET
Humorista
Parece que você pretende que esse "rir de si mesmo" seja uma etapa para que as pessoas repensem comportamentos. É por aí?
Pois é. Vendo o Campeonato Brasileiro (de futebol), penso um pouco nisso. Um campeonato em que os jogadores fingem que foram agredidos. Fingem que estão contundidos. Fingem que a bola sumiu. Fingem que deu uma fisgada na perna quando erram o passe. Aí a torcida cai na porrada, a polícia dá porrada na torcida. Nossa sociedade está fazendo um jogo em que é normal fingir, é normal trapacear e isso acaba penetrando na nossa mente. Quando a gente cria quadros, na TV, dando porrada no nosso cotidiano, é para mostrar que a gente está na mesma. Que nós, o povo brasileiro, nós somos um time que precisa estar mais unido.
É bastante comum a gente acordar e ver um vídeo do seu programa do dia anterior circulando nas timelines. Lembro de um com uma paródia da cantora Lorde trazendo spoilers de seriados. É uma forma de a TV aberta concorrer com esse humor de esquetes que surgiu na internet?
A gente não faz pensando em viralizar. Mas faz para provocar, no bom sentido da palavra. Quando você faz um humor mais morno, mais raso, ele não chega na pessoa. Quando faz um humor atual, acerta na veia. Essa música, por exemplo, dá 20, 30 spoilers. De seriados americanos até Chaves & Chapolin. Se você não entende um trecho, entende outro. Nós selecionamos sempre dois quadros do Tá no Ar para colocar no YouTube e no Facebook fora do conteúdo fechado do Globoplay. Ver o próprio trabalho em correntes de WhatsApp é muito legal. Outro dia eu mesmo recebi uma cena do Tá no Ar que era o supermercado Recessão: "Demissões relâmpago! O gerente enlouqueceu!". Muito atual, muito preciso, mesmo sem ser o assunto do dia.
Atualmente discutem-se os limites do humor em relação a minorias. Lembro de um quadro de Os Trapalhões, no passado, em que algo explodia em cena e os rostos de todos ficavam pretos, exceto o do Mussum, que ficava branco. É um tipo de piada que provavelmente a nova versão do programa não vai reproduzir. Como você se posiciona em relação isso?
Existe um movimento na sociedade, não só no humor, de conscientização sobre determinados temas. Quando você cita racismo, por exemplo. Há 128 anos, os negros estavam tomando chicotadas. As negras estavam sendo estupradas. E os filhos eram tomados delas. Com 60 anos, o escravo era posto na rua para morrer. A reintegração dos negros não aconteceu. De repente aquilo que ontem era uma brincadeira hoje é uma ofensa. Não vejo isso como uma coisa ruim. O humorista tem de saber onde está batendo. Não acho graça de brincar com isso. O bisavô de um cara que está vendo o programa tomava chicotada! No Tá no Ar, inventamos o Branco do Brasil. Com aquele texto de comercial de banco: "Você quer ter vantagens, estudar nas melhores escolas, ser melhor atendido em todos os estabelecimentos? Venha ser um Branco do Brasil". Não quer dizer que eu esteja batendo no branco. Estou batendo na desigualdade. Aí tem lá o Ubirajara Dominique, um índio que é homossexual de uma tribo do interior do Mato Grosso. A gente está batendo no índio? No homossexual? Não, a gente está batendo na nossa noção de que índio é tudo igual. Que índio está pintando a cara e batucando. Há diversos Ubirajaras, que querem ir na lan house, cortar o cabelo num lugar descolado, sacou? Que querem ir no show do Luan Santana. A gente, às vezes, fecha os olhos para isso.
O quadro Casa dos Autistas, paródia da Casa dos Artistas exibida no Comédia MTV, em 2011, foi condenado a indenizar pais de crianças autistas. Foi um exemplo desse humor que não tem graça?
É legal esclarecer esse episódio. Não é que eu tenha mudado. Sempre tive a intenção de bater na coisa certa. Naquele tempo, eu não era redator do programa. Era apenas um dos atores. Mesmo assim, barrei a cena, que era ofensiva. Isso é raro. Em geral, se é algo que me deixa desconfortável, a gente ajusta na hora e segue. Nesse caso, eu me recusei a gravar. Duas vezes. Inclusive ouvi: "Você é conservador, hein?". Em uma terceira oportunidade, concordei em fazer, mas desde que fosse uma chamada imitando o Silvio Santos. Eu não estava na cena, não era o responsável, fazia só a voz. Mas não deveria ter feito. Fiz. E acabei pagando a conta. Mas sabe que, no fim das contas, foi muito bom. Em vez de falar "o humor é livre, eu falo o que eu quiser, parem de mimimi", a gente recebeu pais e filhos autistas e fez uma campanha de conscientização. A MTV exibiu comerciais, e até hoje tenho contato com alguns daqueles pais. Sei mais sobre autismo em razão daquilo.
O humorista tem de saber onde está batendo. No (quadro) Branco do Brasil, não bato no branco, mas na desigualdade. O (personagem) Ubirajara Dominique não bate no índio, mas na noção de que índio é tudo igual.
MARCELO ADNET
Humorista
Que tipo de humor você consome? Você se inspira em algum tipo específico de comédia?
Na TV brasileira eu vejo um pouco de tudo, mas minha inspiração vem do cotidiano mesmo. Sou jornalista por formação, então acho que o humor se inspira na realidade. Tenho um método de me alimentar do noticiário, do cotidiano, e depois transformar em uma crítica a todos nós, incluindo a mim. Minha matéria-prima é o Brasil. A galera da alimentação fitness, os atletas de Instagram, postando suas dietas e seus corpos antes e depois. Ver comerciais é importante, também. Ligar o rádio, conversar com as pessoas. Gosto de observar as pessoas, a vozes, os pensamentos das pessoas. Outro dia, estava com o Gui Santana em uma premiação da Globo. Fiz o Chacrinha, e ele fez o Faustão. A imitação do Gui do Faustão é muito boa não só porque a voz fica igual, mas porque ele fala coisas que o Faustão falaria. Faz umas piadocas com sogra, sabe? (Risos.) Quando você consegue dominar isso, fica muito poderoso.
É o que aconteceu com o Silvio’s Greatests Songs, do Tá no Ar? Talvez o mais engraçado desse quadro é justamente imaginar o Silvio Santos em vez de vê-lo. De onde surgiu aquilo?
Cara, surgiu no grupo de WhatsApp dos redatores do programa. Começaram a falar de determinada música, e eu mandei uma versão do Silvio Santos cantando. Aí o pessoal caiu na gargalhada e se perguntou como aproveitar de alguma forma. Alguém disse: "Já sei! Canal de áudio". Antes da temporada, a gente faz uma pequena playlist de músicas que são engraçadas de imaginá-lo cantando. Porque não tem nada a ver com ele, ou sei lá por quê (risos).
Como caiu para você fazer o Rolando Lero na nova Escolinha do Professor Raimundo? é uma tremenda responsabilidade interpretar o personagem de um humorista tão bom como o Rogério Cardoso (1937 – 2003).
Sou muito amigo do Bruno Mazeo (filho de Chico Anysio e intérprete do Professor Raimundo, como o pai). Acho que ele pensou em mim para o Rolando Lero porque os textos são complicados, e porque ele é um cara de pau. Primeiro, fiquei um pouco assustado com o convite, porque, como você mesmo disse, o Rogério Cardoso é incrível e insuperável. O melhor que eu posso fazer é pela memória dele. Outro dia tive contato com a mulher do Rogério, que disse que vai me passar textos originais, que ele manuscreveu. Além disso, também fiquei sabendo de algumas manhas do Rogério. Ele usava aquele lenço para ler o texto. Quando tinha alguma dúvida, ele começava a ler por um furo no lenço. Também tinha um problema de flatulência. Se você for assistir ao original, vai ver o professor dizendo para ele se afastar (risos). Tem um lance de bastidor muito interessante na Escolinha. Você recebe apenas o seu texto. Então a gente só sabe o texto dos outros na hora. Morremos de rir, não há o menor controle. É um clima que o programa absorveu bem.
Assim como o Chico Anysio, você tem essa coisa de inventar personagens, né? Tem o Ubirajara, o militante, o playboy Tony Karlakian. Tem alguns novos que você pode adiantar que estarão na próxima temporada do Tá No Ar?
Tenho alguns em composição, nada pronto, que eu possa compartilhar. Mas, no último Adnight Show, com a Anitta, teve um personagem gaúcho! Um designer que acha que tudo o que é original do Rio Grande do Sul é bom. Se é bom e é de fora, é chupado de algo do Rio Grande do Sul.
Então ele é só um gaúcho convencional?
(Risos.) Não (empostando a voz), bem capaz!