Diante dos casos de pedofilia – cuja lista de ocorrências foi ampliada por episódios rumorosos em Porto Alegre, como o abuso de uma menina de cinco anos em um supermercado – uma pergunta vem à tona: será que estamos educando as nossas crianças para perceberem situações de risco? A psicóloga Giuliana Chiapin explica que desde cedo é preciso trabalhar com os filhos as percepções de autonomia dos limites do corpo, em que, de acordo com as fases do desenvolvimento infantil, vai-se munindo meninos e meninas de experiências sobre o que podem e o que não podem permitir na interação física com outras pessoas.
O problema é que essa tarefa não se resume a repassar informações do tipo "não deixe ninguém tocar em você" ou "não fale com estranhos".
É preciso que essa formação inclua, de fato, experiências de respeito ao corpo do outro vividas desde cedo dentro da própria família. E há muitas situações que contradizem a proposta de proteger o corpo. Entre os exemplos rotineiros dessa sutil violação, Giuliana cita o forçar a criança a comer enfiando comida na sua boca ou até mesmo brincadeiras de cócegas sem respeitar o pedido da criança para cessá-las quando não consegue mais respirar de tanto gargalhar.
— São situações que acabam dando início a uma percepção errada do limite do corpo e do respeito à vontade do outro. É a mesma contradição quando se diz para a criança não falar com estranhos, mas a obrigamos a beijar quem ela não conhece. A palavra-chave é coerência — avalia Giuliana. — Não é cair em um extremo de não pedir que a criança cumprimente as pessoas, mas temos de observar e respeitar seu ritmo, e isso não é muito desenvolvido na nossa sociedade, que ainda acha que bebês/crianças não têm sentimentos ou simplesmente pertencem apenas ao desejo/vontade do adulto.
A sutileza dessa educação para a proteção do corpo é tamanha que a psicóloga, fundadora da consultoria Investir Infância, voltada à primeira infância, explica que os pais devem, por exemplo, deixar claro aos bebês que está na hora de trocar a fralda e não, abruptamente, tirar a roupa da criança sem prepará-la para o que vai acontecer. Outra situação ruim para a promoção dessa autoproteção é tratar com normalidade a "brincadeira" de um irmão baixar as calças do outro ou de um amigo. Para muito além do que é dito e explicado, é no cuidado diário, afetivo e protetivo, que a criança aprende a respeitar a si e aos outros e também, na medida do possível, a se defender.
A psicanalista Luciana Wickert observa que, nos nossos moldes de educação, há muita confusão entre respeito e obediência. Muitas vezes, esclarece ela, é repassada às crianças a ideia de que, por estar diante de um adulto, ela tem de obedecer a qualquer determinação – e é aí que o abusador pode se aproveitar. Diante da realidade de que a maioria dos casos de abuso infantil ocorre dentro de casa e envolve pessoas muito próximas e da confiança das vítimas, ela reforça a importância de valorizar o limite que a criança expõe, seja verbalmente ou fisicamente. A escola, avalia a psicanalista, seria uma excelente ferramenta para detectar casos de abusos, se ainda não houvesse tanto tabu para se falar de sexualidade com a gurizada.
— Como muitos desse casos ocorrem em casa, a escola poderia contribuir nessa discussão e ter pessoas capazes de reconhecer essas situações a partir do relato do aluno. Quando a vítima fala ou demonstra e não é efetivamente escutada é algo arrasador — diz Luciana.
Outro ponto visto com preocupação pela psicanalista é a forma como os próprios pais por vezes tratam a socialização das crianças. A clássica frase "vai ali brincar com os amiguinhos", dita inocentemente aos pequenos, pode ser compreendida de forma equivocada.
— A criança pode entender que todo mundo é amigo, e não é bem assim — comenta Luciana. — Uma criança desconhecida não é a mesma coisa do que um amigo. Ela (criança) tem de ser educada para reconhecer os diferentes tipos de relações e ter o direito de falar quando não quer se aproximar de alguém.
A sensação diante da proximidade do outro é diferente para cada pessoa.
A psicanalista lança mão de outra máxima arraigada na criação dos filhos que é o "não conte para os seus pais", na tentativa de criar cumplicidade diante de uma travessura ou da quebra de uma regra imposta pelos pais. A intenção pode até, em alguns casos, parecer boa, mas o recado à educação não é bem claro.
— Podemos, assim, estar dizendo à criança que tudo o que vai dar problema deve ser um segredo. Só um discurso sobre como se proteger não adianta se não há ações cotidianas. Precisamos dar a elas outro tipo de preparação para a vida — avalia Luciana.