Todo mundo quer falar de sexo com a psiquiatra paulistana Carmita Abdo. O tema não a ocupa apenas no consultório, nas salas de aula da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP) ou nas investigações conduzidas no Programa de Estudos em Sexualidade (ProSex) do Hospital das Clínicas – acompanha-a em todos os lugares. Sempre tem alguém querendo tirar uma dúvida, pedir a sua opinião, revelar o inconfessável.
— É o tempo todo. As pessoas sempre aproveitam aquela hora em que você dá uma levantadinha e vão junto. Sempre sou pega no cantinho. "Olha, queria só te perguntar um negocinho..." Aí o negocinho não é tão simples assim, às vezes é uma situação altamente complexa que a pessoa te joga e você fala: "E agora?" – conta a médica, durante passagem por Porto Alegre em junho para participar do congresso Brain 2017, sobre cérebro, comportamento e emoções. — E as pessoas imaginam que elas são as únicas que me chamam para um cantinho — diverte-se.
Não era o plano inicial dedicar a carreira, que já soma quatro décadas, à análise dos mais íntimos hábitos de homens e mulheres. Carmita, que tem 66 anos, acabara de concluir a residência quando, em sessões de terapia com universitários, descobriu que eles desejavam discutir apenas isso. Deu início então às pesquisas em sexualidade, depois fez um desvio por outro caminho, mas retornou. Desinibida, falava de práticas e disfunções sem meias-palavras, o que fazia com que fosse cada vez mais requisitada para palestras e entrevistas. Não parou mais, virou autoridade na área.
Na Capital, Carmita proferiu duas conferências sobre relacionamentos na era digital. Pouco antes de subir ao palco do Teatro do Sesi, onde foi aplaudida de pé pela plateia que gargalhou com seu espirituoso despudor, a psiquiatra recebeu ZH para um bate-papo na sala de imprensa. Carmita abordou os desafios da longevidade – e dos casamentos longevos – e as mudanças de comportamento mais marcantes dos últimos tempos, incluindo o que classifica como a segunda revolução sexual feminina:
— A mulher está aprendendo que amor e sexo não necessariamente andam juntos. O homem já sabia disso.
O que você pensa sobre as novas formas de namorar?
Acho que é bom e é ruim. É bom porque você tem mais oportunidades de conhecer pessoas mais compatíveis com sua forma de pensar. Porém, também, são mais oportunidades de você não ser correspondido, de se equivocar, de fantasiar em cima do virtual antes que consiga de fato ter contato com a pessoa. Sua ferida fica por vezes aberta porque a pessoa some e você tem que resolver isso. A forma como as pessoas se desligam hoje, via WhatsApp, por exemplo, é altamente frustrante e dolorosa. Antes você tomava cuidado, até trazia desculpas esfarrapadas, "você é a pessoa certa que me surgiu na hora errada", "o problema sou eu". Agora é "lamento, paramos por aqui" e nunca mais, exclui, deleta. E você fica ali: "O que foi que aconteceu?".
Você realizou duas grandes pesquisas sobre comportamento sexual, com oito anos de intervalo. A segunda, divulgada no ano passado, mostrou um aumento de 43% para 57% no número de mulheres que fazem sexo por atração, sem envolvimento amoroso.
É a opção, não temos outra possibilidade. Precisa-se fazer sexo e esse envolvimento amoroso não é a tônica dos relacionamentos muitas vezes. São 14% a mais de mulheres aceitando uma relação sexual sem compromisso. Estamos na segunda revolução sexual feminina. A primeira foi com a pílula, que fez com que ficasse bem explícito que o sexo reprodutivo e o erótico são coisas separadas. Nessa segunda revolução, a mulher está aprendendo que amor e sexo não necessariamente andam juntos. O homem já sabia disso. A pílula surgiu no final dos anos 1950, mudou a vida das mulheres, hoje já está incorporada no dia a dia delas. O grande dilema, agora, é a vivência do amor romântico, que implica estabilidade, cumplicidade, versus o ficar, que tem mais a ver com diversidade, falta de compromisso. Essa efemeridade faz parte do nosso cotidiano de forma geral. Você troca de emprego muito mais do que gerações passadas, você não tem relacionamento com os seus vizinhos porque você troca muito mais de casa ou fica muito pouco em casa, você vê muito menos suas amizades e vai criando novos grupos...
Então é bom que as mulheres estejam aprendendo a lidar melhor com a efemeridade.
Sem dúvida. É mais realístico. Perguntei, no (estudo) Mosaico Brasil, de 2008, "com quem você iniciou sua vida sexual?", e 90% das mulheres responderam que tinha sido com o namorado, e só 36,7% dos homens responderam que havia sido com namorada. Ou seja, mais da metade delas não estava namorando, segundo eles, mas se considerava namorada. No Mosaico 2.0, oito anos depois, mudou um pouco: 80% das mulheres acham que estavam namorando versus 40% dos homens que responderam que iniciaram a vida sexual com namorada. Então 10% a menos de mulheres passaram a entender que o relacionamento não era um namoro; era uma iniciação sexual. Os homens classificaram essas mulheres com quem eles tiveram a primeira relação sexual como amigas, desconhecidas, primas, enquanto elas, num contingente muito maior, consideraram esses desconhecidos, amigos e primos como namorados.
Que outras mudanças relevantes você percebeu entre uma pesquisa e outra?
A homossexualidade é hoje muito mais presente. Não a homossexualidade em si, mas a percepção de que as pessoas não têm uma orientação sexual binária, uma porcentagem vai para cá e outra para lá. Hoje, as pessoas entendem que existem intermédios e que, ao longo da vida, podem trocar de preferência sexual, e isso pode ter um caráter exploratório ou não. Pode ter um caráter mesmo de querer vivenciar diferentes formas de estar sexualmente com alguém.
As novas gerações experimentam mais?
São mais ousadas. Elas acabam aceitando mais a diversidade, a falta de compromisso. É como se tivessem nascido em uma época em que isso já é o natural. Um adolescente avalia a separação dos seus pais como tendo sido uma coisa muito mais imediata do que foi, como se um dia eles acordassem e resolvessem que “nós não estamos mais vivendo bem e vamos nos separar”. Isso, para um adolescente ou uma criança, dá uma percepção falsa de que o processo foi instantâneo, simples, "eu não quero mais você, até logo". Não tenho nada contra a separação, acho que é necessária muitas vezes, mas ela é vivenciada hoje de uma forma mais frequente, "fico com você até a hora que eu não estiver mais me interessando, então eu troco de parceria". Antes você tinha os casais vivendo, e às vezes vivendo mal, dentro de uma condição de casamento em que as separações aconteciam mais tarde, depois de criados os filhos. Aí o filho não tinha essa percepção. Outra coisa: os pais estão deixando para ser pais mais velhos, quando os relacionamentos já perderam o glamour, o entusiasmo. Então as crianças nascem dentro de um casamento já não tão exuberante. "Agora nós já cansamos de estar só nós dois, vamos ter filhos." É como se o filho viesse para fazer parte de uma outra etapa, não de uma etapa onde "a gente está tão bem, a gente se quer tanto, que a gente vai ter um filho". Ser fruto de uma relação que precisa de algo novo para subsistir dá a essa criança uma visão muito diferente das coisas.
Como isso vai impactar na vida afetiva, conjugal e sexual dessas pessoas?
Sem dúvida, elas vão ter esse modelo de que a vida nem é tão interessante assim e quando eu não estiver tão entusiasmado eu vou embora. A vida ficou muito longa, e nós ainda não sabemos o que fazer dela. Ela precisa ser longa e boa. Já sabemos como prolongá-la, a tecnologia nos deu essa possibilidade. O que fazer com esse tempo mais longo é o que está nos faltando. Então acabamos buscando alternativas e, muitas vezes, dando asas à imaginação, criando situações até que nos colocam em enrascadas porque queremos usar essa vida para algo inusitado: vou me separar, vou arrumar outra pessoa para fazer um relacionamento a três, ou sei lá. Estar há 40, 50, 60 anos com uma pessoa é uma façanha. Há que se ter muita imaginação, muita criatividade.
Os casais muito longevos parecem perdidos ou estão conseguindo segurar as pontas?
Há casais que se reinventam, partem do princípio de que não adianta mudar de parceiro porque vão cair na mesma frustração. Então mudam de cidade, viajam, incorporam novas formas de relacionamento, como sexo a três, sexo grupal. Nunca se imaginaram fazendo isso e de repente vão buscar, aí correm os riscos que advêm disso, como o casamento não subsistir. Outros vão dirigir a libido para outras atividades que não a sexual, como um trabalho novo em que os dois possam trabalhar juntos e usufruir um da presença do outro. Ou o contrário, "sempre estivemos muito próximos, agora vamos tomar uma distância, você vai morar numa casa e eu vou morar na outra e continuamos nos relacionando". As formas são tantas, o que me dá a entender que ainda não se chegou ainda a uma boa equação.
Do que as pessoas mais se queixam no seu consultório? O que mais as atormenta?
O que as atormenta muito é a diferença de interesse sexual nos casais depois de uma certa fase da vida. A partir dos 52 anos, em média, as mulheres entram na pós-menopausa, e acabam tendo um interesse sexual bem menor, enquanto que, para os homens, nessa faixa etária, o desejo permanece vívido. Dois terços dos homens de 60 anos em diante mantêm o mesmo nível de atividade, se puderem, que tinham aos 40 ou 50 anos. Esse descompasso, para casais que se amam e querem permanecer juntos, tem sido um desafio grande. As mulheres não têm, assim como os homens, a possibilidade de, com um comprimidinho, resolver as suas mazelas sexuais. E aí elas têm que se ver diante de um parceiro habilitado sem conseguir corresponder. E elas até querem. Por quê? Querem servir ao seu parceiro ou elas querem continuar sendo felizes sexualmente? Aí tem de tudo. Tem aquelas que têm muito receio de perder o parceiro por não estar correspondendo, e tem aquelas que, pelo contrário,"eu quero, eu me sinto alijada de uma função que sempre tive". A pílula rosa (flibanserina, droga para estimular a libido feminina) resolveu muito pouco a vida sexual das mulheres, mas tem o mérito de ter sido o primeiro medicamento liberado para a sexualidade feminina.
O que a levou a pesquisar a sexualidade?
Foi uma obra do destino. Acabei a residência e fui convidada para trabalhar na USP como psicoterapeuta e psiquiatra dos alunos. Um professor me disse: "Vamos estudar esses jovens". Era final dos anos 1970, quando existia uma liberdade sexual sem aids. A única coisa que os alunos me traziam nas sessões de terapia eram suas questões sexuais. Eu ouvia falar de sexo da hora que eu chegava à hora que eu saía. Falei para o professor: "Eles só falam de sexo". Aí ele disse: "Então vamos pesquisar esse aspecto". Minha tese de doutorado foi Aspectos da Sexualidade de uma População Universitária. Confesso que não era algo que eu estivesse pensando muito em fazer. Tanto que, depois, na minha livre-docência, pensei em outro tema completamente diferente, que era a minha paixão. Trabalhei com a teoria da comunicação de Watzlawick, do grupo de Palo Alto, mostrando como o residente de psiquiatria estabelecia o contato com seu paciente e quais eram as patologias comunicacionais naquela relação. Mas ninguém nunca me chamou para falar sobre isso, ninguém nunca se interessou (risos). Fiz um livro sobre o tema, ele é muito bem estudado no ensino médico, mas todo mundo queria que eu falasse de sexo, e foi para onde acabei enveredando. Depois descobri que tenho facilidade de falar no assunto, e as pessoas começaram a me chamar para falar porque não tenho meias-palavras. Acaba sendo fácil entender sexualidade quando você fala sem inibição. Raramente me chamam para falar de outro assunto.
E você naturalmente deixa os seus interlocutores desinibidos também, o que é fundamental.
É mesmo? Ontem eu estava dando uma aula para educadores na faixa dos 60, 70 anos. Eles estavam me olhando com uma cara muito séria, e eu pensando: “Meu Deus!”. Acho que os impactou o que eu falava, ficavam pensando, arregalavam o olho. E eu pensando: "Meu Deus, na hora em que acabar isso aqui, não quero nem saber o que vai vir de retorno", tipo assim "depravada!", "de onde é que a senhora tirou essas ideias?". Mas vieram muitas e muitas perguntas, bastante pertinentes, uma retribuição muita grata. Homens e mulheres que estão na minha geração mas que têm uma forma de pensar, entender e vivenciar a sexualidade não como eu, que ouço todos os dias o que você pode imaginar...
E o que eu nem posso imaginar também.
E o que você nem pode imaginar! (Risos.)
Como você definiria os perfis do homem e da mulher brasileiros em relação a sexo?
Essa fama que temos de povo altamente resolvido e modelo sexual para o universo não corresponde. Temos as mesmas mazelas de qualquer outro povo. Estive em Praga (na República Checa), em maio, e me chamaram a atenção outdoors nos quais a nudez, as posições sexuais são explicitadas de uma forma muito mais tranquila e muito mais aberta do que nós conseguimos fazer aqui. Lidamos ainda com a nossa sexualidade dentro de um certo modelo mais restritivo, que tem a ver, claro, com as nossas origens, a forma como vivenciamos uma série de outras áreas da nossa vida. Temos ainda muito preconceito em relação a algo que faz parte do dia a dia, como comer, estudar, trabalhar. No Brasil, ainda é motivo de chacota, de piadinha, de ofensa. Somos o país que mais mata aqueles que têm uma sexualidade fora do padrão. Isso me deixa muito triste porque o mundo nos percebe de um jeito e, na verdade, não é por aí. O fato de não sabermos lidar com a homossexualidade, com a transexualidade, com a liberdade sexual da mulher, tudo isso nos coloca muito aquém daquilo que pretensamente se imagina que nós sejamos.
Começamos falando do namoro na atualidade. Como era namorar na sua juventude, no final dos anos 1960, início dos 1970?
Vou contar um segredo para você. Sou a mais velha de uma família de cinco filhos. Meu pai era muito rígido, mas também muito coerente. Ele me passou duas mensagens tácitas, nunca foram explícitas, mas que eu sabia: você só vai se casar depois de se formar e só vai iniciar a sua vida sexual depois de se casar. Na vivência acadêmica, conheci um rapaz, e logo resolvemos que queríamos viver juntos – ele está comigo há 43 anos. Pensei: "Meu Deus, e agora? Estou numa enrascada. Não posso falar para o meu pai que em plena faculdade quero me casar e também não posso iniciar uma vida sexual". Eu me sentiria traindo a confiança do meu pai, que também esperava que eu fosse modelo para as minhas irmãs. Num belo dia, no auge do meu sufoco, resolvi que falaria com ele. Acho que fui razoavelmente hábil. "Papai, tem duas situações que eu captei da educação que você me deu, do ponto de vista de relacionamentos: que não devo pensar de forma nenhuma em casamento antes de me formar e que não devo iniciar minha vida sexual antes de me casar. Uma das duas eu vou furar. E você tem a prerrogativa de escolher qual". Aí eu me casei durante a faculdade (risos).
E não deu briga?
Não. Meu pai percebeu que aquele era um relacionamento que me importava muito e que talvez eu perdesse uma pessoa que me era muito cara. Ele foi de uma sensibilidade incrível – é claro que muito contrariado: "Você tem certeza? Tem a dimensão do passo que está dando?". Eu falei: "Tenho". "Você acha que é com esse homem que vai viver a sua vida?" "Acho." A única coisa que ele exigiu foi que houvesse um casamento formal. Foi um casamento muito simples, não foi aquele festão que ele imaginaria dar para a primeira filha dele que casou.
Seu marido é médico também, né?
Ele é urologista. E diz que tudo que eu sei de sexo foi ele quem me ensinou (risos).