Empurrando um carrinho vazio, um homem se aproxima de uma prateleira de vinhos tintos, tira o celular do bolso da calça de moletom, e o aproxima discretamente da garrafa. Olha uma imagem na tela por alguns segundos e segue viagem sem levar nada. Minutos depois, uma mulher pede que o companheiro fotografe os rótulos de duas garrafas – uma retornará à prateleira, enquanto outra vai com o casal. Três amigos param em frente a um vinho argentino de R$ 18. Dois parecem convictos quanto à escolha, mas um deles hesita e resolve fazer um registro do rótulo. Depois de mirar rapidamente a tela do smartphone, acena com a cabeça, levando o produto consigo.
Observadas em uma mesma noite de outono pré-zero grau em um supermercado de Porto Alegre, as três cenas ilustram um comportamento cada vez mais comum entre uma parcela de brasileiros: a utilização de aplicativos de celular para investigar a avaliação de um produto antes de pagar por ele. E o cenário gastronômico, aquecido nos últimos anos, tem sido um dos principais laboratórios de experiências dos desenvolvedores desse tipo de ferramenta.
– O usuário está buscando melhorar seu padrão de alguma maneira, e busca o conhecimento que não tem com os outros. É a chance de ter um pouco mais de controle sobre o que está consumindo – analisa Fernando Marson, coordenador do curso de Jogos Digitais da Unisinos.
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Aplicativos que informam sobre produtos como vinho e cervejas especiais – alguns exigem apenas uma foto do rótulo para exibir avaliações – e que fornecem ou dão dicas sobre o preparo de receitas têm se tornado cada vez mais populares. Um dos mais conhecidos, o estrangeiro Vivino, que exibe informações técnicas e avaliações de usuários sobre vinhos, já conta com mais de 1,7 milhão de downloads no Brasil – projeta atingir dois milhões até agosto –, com um crescimento de 70% de 2015 para cá. Uma espécie de Foursquare da cerveja, o americano Untappd já está no celular de cerca de 100 mil brasileiros – o país é o quinto em número de usuários, atrás de EUA, Holanda, Canadá e Grã Bretanha. Somente em aparelhos de sistema Android, o app de receitas Tastemade já teve mais de 100 mil baixamentos.
– Achamos que o Brasil é um dos mercados mais estimulantes. Os usuários brasileiros mostram um notável interesse em vinho e tecnologia. Eles têm, em média, três vezes o número de seguidores do que o usuário médio em outras partes do mundo – conta Brant Cebulla, gerente de marketing do app.
A peculiaridade brasileira no uso do serviço como "rede social" é apontada por especialistas como um dos principais fatores do sucesso desse tipo de ferramenta por aqui. Além de viabilizar o contato entre usuários para que possam, digamos, validar suas escolhas, vários dos apps permitem que qualquer um se torne relevante por meio de comentários sobre suas experiências.
– Antigamente, era preciso ter um curso, escrever para uma revista ou ser chef de um restaurante para opinar sobre temas como cerveja especial, boa comida e vinho. Com os aplicativos, pessoas comuns podem influenciar a tomada de decisão de outros consumidores – reflete Marcos Lamb, professor da trilha digital dos cursos de Publicidade e Propaganda e Administração da ESPM-Sul.
Vaidade e popularidade do smartphone
Nos aplicativos de nicho, como os que se dedicam a atrair consumidores de um certo tipo de bebida, por exemplo, Lamb avalia que há ainda um apelo ao "senso de pertencimento". Em resumo, as pessoas gostam de sentir-se parte de um grupo seleto, visto como entendedor de um determinado assunto. Já no caso das ferramentas de receitas, existiria uma combinação do uso da rede com a cultura do "faça você mesmo" que acaba fomentando a busca por esse tipo de informação.
– Houve uma geração de conteúdo que bombardeou o consumidor e provocou uma mudança cultural. Hoje há programas de chef na TV aberta, e as pessoas querem fazer jantares de chef em casa. As ferramentas vêm para trazer a informação e auxiliar nesse processo – diz o professor da ESPM-Sul.
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Mas nem só de vaidade alimenta-se o mundo dos apps gourmet. O uso desses tipos de ferramenta, acreditam profissionais, também é um reflexo da migração dos usuários do computador para o smartphone – o que já é observado por outras áreas, como as empresas de mídia. E a tendência é que, mais rápido do que se imagina, provoque mudanças na forma como as pessoas consomem.
– Em marketing, existe um conceito que chamamos de "primeiro momento da verdade" do consumo, quando a pessoa tem o primeiro contato com um produto. Os apps estão criando uma nova categoria, um momento "zero", porque permitem que, antes de as pessoas terem o contato real, formem opiniões sobre aquilo a partir da opinião dos outros – conclui Vinícius Lobato, diretor de negócios da Brivia, empresa que trabalha o uso de meios eletrônicos para construção e administração de uma marca.
Brasileiros querem concorrer com gigantes
Os gringos chegaram na frente e ainda são maioria entre os mais populares, mas já há desenvolvedores brasileiros buscando espaço no mercado dos aplicativos gourmet. Inclusive, de olho no Exterior.
O paulista Leduar Staniscia, 30 anos, passou de usuário a desenvolvedor de uma ferramenta que pode ajudar pessoas a escolher o que beber. Lançado em janeiro, o beHoppy – que fornece informações técnicas e permite que os usuários avaliem as cervejas –, comemora os primeiros 10 mil downloads com uma meta ambiciosa: tornar-se o maior app de cerveja do mundo.
– Eu usava o Vivino (de vinhos) e sentia falta de algo parecido para a cerveja. O que temos no Brasil é um piloto que queremos tornar global até 2018 – conta o fundador e CEO da empresa.
Segundo Leduar, o app está sempre se adaptando às necessidades dos usuários:
– No começo, achamos que as pessoas queriam o app para marcar o que desejam beber, mas os nossos dados indicavam que tinha oito vezes mais gente usando o beHoppy para lembrar do que já tomou. Aí, melhoramos essa funcionalidade.
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Também lançado em janeiro deste ano, o Evino surgiu com o intuito de incrementar as vendas do e-commerce de mesmo nome por meio de uma relação mais próxima com o consumidor. Para isso, o app pretende, além de disponibilizar a busca e avaliação de produtos, "contar histórias".
– Temos quatro redatores que pesquisam para escrever sobre os rótulos. Queremos aprimorar o aplicativo no sentido de interagir e educar o consumidor – conta Marcos Leal, cofundador da Evino.
Desenvolvido na Alemanha, o aplicativo – disponível apenas para iOS –, já foi baixado por mais de 20 mil brasileiros. O objetivo de ajudar o site a vender mais, aos poucos, se concretiza: conforme Leal, de 20% a 30% dos usuários também compram na loja virtual.
Popular na internet pelo site de mesmo nome, o app Tudo Gostoso é marcado pela interatividade. Os usuários, além de consultar, podem enviar receitas. Somente em sistema Android, segundo divulgado na PlayStore, mais de 10 mil já baixaram o aplicativo.
Do intercâmbio para as prateleiras do mercado
Foi em uma temporada fora do Brasil, em 2012, que o cozinheiro Beto Galetto, 29 anos, descobriu que podia usar o celular como aliado na hora de escolher o vinho que iria tomar. A tática o ajudou no país estrangeiro depois de muito ter se decepcionado na prática. Isso porque, sem conhecimentos mais profundos sobre vinicultura, escolher um rótulo exigia a indexação de critérios próprios, nem sempre úteis.
– Eu ia na sorte. Olhava o rótulo, e se achava o design legal, comprava. Mas esses normalmente eram fria – lembra o cozinheiro.
De volta ao Brasil, conheceu por meio de amigos um aplicativo diferente do que costumava usar no Exterior. Com mais funcionalidades e informação – além dos dados técnicos e da avaliação dos usuários, permitia saber mais sobre a região produtora, por exemplo –, o novo app ganhou status de personal sommelier. Tornou-se o principal consultor nas decisões entre rótulos na mesma faixa de preço, em jantares em restaurantes ou nas idas ao Mercado Público, onde costuma comprar vinho.
Atualmente o cozinheiro utiliza o smartphone menos para ir às compras do que para lembrar do que já consumiu. E, ao contrário de muitos usuários, não costuma compartilhar suas impressões sobre os vinhos no app. Sua opinião se resume a indicar uma pontuação, que usa para fins pessoais.
– Já tomei vinhos ruins e classifiquei com uma nota baixa pra lembrar de não tomar. Não quero ser um crítico, só saber o que comprar – explica.
Sous chef na tela do celular
Cozinhar nunca foi problema para Jorge Ferreira, 46 anos. Mas a sementinha de chef plantada pela família de bons cozinheiros do administrador de empresas cresceu com o passar dos anos.
– Gosto de fazer coisas que eu nunca fiz, e usava o computador para pesquisar – conta.
Há cerca de um ano, deu-se conta de que o pouco prático ato de levar o notebook até a cozinha para conferir as receitas podia ser substituído por alguns toques na tela do celular. Instalou o aplicativo do site onde costumava se inspirar para cozinhar.
Morador da zonal sul de Porto Alegre, Jorge também passou a usar a ferramenta para planejar as refeições da semana, evitando saídas desnecessárias. Na fila do banco ou à espera de algum serviço, aproveita para pesquisar os ingredientes.
Com uma forcinha da tecnologia, já preparou sua primeira moqueca de peixe e um sem-número de risotos. Fez sucesso com a esposa e os amigos, mas também já foi traído pelo formato do aplicativo, que disponibiliza receitas de usuários.
– Teve uma receita em que ia jambu (planta amazônica que deixa os lábios dormentes), mas não ficava claro que era só para escaldar, e eu cozinhei junto. Fiz praticamente um anestésico – lembra o administrador.
Mais recentemente, Ferreira também se tornou usuário do app de um site conhecido por vídeos rápidos de receitas postados no Facebook.
– Esse é melhor, tem vídeos da execução, ficha técnica, história do prato. É um aplicativo gourmetizado – afirma.
Aplicativo conecta amigos cervejeiros
Beber socialmente passou a soar mais literal para o analista de sistemas Bruno Benvegnu quando, por indicação de amigos, começou a usar um aplicativo para avaliar as cervejas que consumia, há cerca de dois anos. O que já era assunto em seu grupo, que reúne apreciadores de cervejas especiais, virou parte da rotina virtual:
– O app é um meio de eu avaliar o que eu tomo para as pessoas comentarem, trocarem impressões. Recentemente, viajei pra um país diferente e tomei cervejas locais. Avaliei todas. É uma forma de ajudar os amigos também .
Seja em casa ou no bar, o intervalo de segundos entre Bruno pegar uma cerveja e servi-la no copo serve para uma pequena produção: vira o rótulo para si, posiciona o celular à sua frente e tira uma foto para subir no aplicativo. Um novo ritual se estabelece depois da degustação, quando escreve suas impressões para compartilhar com outros usuários.
Desde que tornou os dois hábitos quase indissociáveis, o analista de sistemas passou a valer-se do app também para conhecer novos produtos. E tornar o investimento em bebidas cujos valores já se distanciaram há muito do preço das cervejas industrializadas mais certeiro.
– Aos poucos, você descobre quem tem o gosto parecido com o seu. E, se essa pessoa avaliar bem a cerveja, a chance de ser boa é de 90% – avalia Bruno, que já desistiu de experimentar rótulos porque estavam mal avaliados no app.