Maria da Penha Maia Fernandes gostava de dormir. Ao deitar, costumava imergir nos sonhos. Era difícil tirá-la da cama na manhã seguinte. Em 29 de maio de 1983, quando o sol nascia, foi acordada abruptamente pelo estampido de um tiro, disparado contra ela pelo seu então marido, o economista colombiano Marco Antonio Heredia Viveros. A agressão, cuja certeza do autor ela teve já no primeiro segundo após o disparo, deixou-a paraplégica.
A cearense tinha 38 anos, era uma profissional respeitada, esposa e mãe de três filhas que, na época, tinham entre dois e seis anos. A partir daquele dia, transformou-se em ativista na luta contra violência doméstica, autora do livro Sobrevivi... Posso Contar, protagonista de uma das leis mais importantes para mulheres do Brasil e referência mundial sobre o tema.
Entre um voo e outro para palestrar pelo país – e a caminho de Porto Alegre para uma série de eventos relacionados ao Dia Internacional da Mulher –, Maria da Penha, hoje com 71 anos, conversou com Zero Hora sobre os 10 anos desde a sanção da lei que leva o seu nome. Considerada pela ONU como uma das mais avançadas do mundo, a lei criou mecanismos para coibir a violência familiar e contra a mulher, estabelecendo punições mais rígidas aos agressores e criando juizados e redes de apoio às vítimas.
Durante a conversa com ZH, a ativista contou ainda detalhes sobre sua história, relembrou a busca pela condenação de seu ex-marido e falou sobre os avanços e os desafios das mulheres brasileiras.
– Hoje, com a Lei Maria da Penha, já temos mais condições de sermos orientadas sobre nossos direitos e sobre como sair de uma situação de violência doméstica – orgulha-se.
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Há 10 anos, a senhora se transformou em símbolo da luta contra a violência doméstica. Todos conhecem a sua história a partir do dia em que seu ex-marido tentou lhe matar. Quem era a Maria da Penha antes disso?
Era uma mãe de três filhas, profissional responsável (farmacêutica bioquímica, com mestrado), que cuidava de casa, e que infelizmente se viu em uma relação de violência doméstica muito intensa. Eu trabalhava até então em um laboratório de uma instituição no Ceará. A minha situação dentro de casa se agravou na década de 1980, em um momento em que ocorreu um movimento de mulheres no Sudeste do Brasil para dar visibilidade à questão de assassinatos de mulheres por seus companheiros. Na época, não se falava quase sobre o assunto, a mulher não tinha voz nem vez, e este foi um período em que a violência doméstica passou a aparecer.
Quando os abusos começaram?
A violência começou quando nossas filhas nasceram. Meu ex-marido começou a mostrar seu verdadeiro eu. Sofri muita violência psicológica, principalmente em relação ao meu papel de mãe, porque ele maltratava minhas filhas. Antes disso ele era uma pessoa amável, prestativa, querida pelos amigos.
Ele batia nas crianças?
Sim, com pancadas. Elas temiam muito ele, só o olhar já amedrontava. É muito triste quando essa violência envolve crianças, que não têm capacidade de absorver isso. Ele não aceitava o comportamento de criança, queria que elas fossem adultas.
Quanto tempo duraram os abusos até a primeira tentativa de assassinato?
Não posso te precisar, mas foi a partir dos anos 1980, quando já tínhamos duas filhas e a terceira estava a caminho. Além de agredir as crianças, ele também passou a me amedrontar pela força física. Jogava pratos para nos atingir. A gente nunca sabia quando ele chegaria em casa, se iria chegar, como iria chegar. Qualquer contrariedade e ele já ficava violento.
Amigos ou parentes suspeitavam que a senhora corria risco de vida dentro de casa?
Não, pois quem é agressor, na maioria das vezes, é socialmente aceito. Quer dizer, é publicamente dócil, educado, e faz até com que as pessoas duvidem que ele possa cometer tamanhas atrocidades. No meu caso era assim. Somente as amigas mais íntimas tinham conhecimento, mas vivíamos em uma época em que não existia visibilidade para esse tipo de violência, nenhuma política para atender essas mulheres, nenhuma orientação para se entender que essa violência é fruto do machismo.
O que a senhora lembra da noite em que seu marido tentou lhe matar pela primeira vez?
No dia do fato não tinha acontecido nada que justificasse uma agressão. Pelo contrário. Ele havia chegado de uma viagem (Marco dava cursos no Rio Grande do Norte e passava uma semana por mês fora de casa), saímos para visitar uma amiga minha que tinha tido filho. Na volta, coloquei as crianças para dormir e fui também para a cama. Ele continuou no seu escritório. Por volta das 6h do dia seguinte, acordei com um barulho muito forte, um estampido, e vi que não conseguia me mexer. Na hora, meu primeiro pensamento foi: “Meu marido me matou”.
Mas depois ele forjou um assalto....
Isso. Vizinhos ouviram o barulho e correram para a rua. As duas moças que trabalhavam lá em casa acordaram também com o estouro e viram meu marido na cozinha, com o pijama rasgado e com uma corda no pescoço. Um dos vizinhos, que era médico, me socorreu, e me levaram ao hospital. Em nenhum momento o Marco falou que um tiro havia sido disparado. Minha sobrevivência e tudo que ocorreu a partir de então foi fruto da ajuda dos meus vizinhos e da minha família. Fiquei quatro meses hospitalizada. A versão que vingou foi a de que teria sido um assalto, e a minha preocupação inicial passou a ser sair da situação de doença grave. Mas logo vi que precisava me proteger dele também.
A senhora chegou a acreditar em algum momento na versão dele?
Claro, claro. Eu acreditei. No primeiro momento me passou pela cabeça que ele teria tentado me matar, mas logo ele contou detalhes do que teria sido o assalto, que quatro homens teriam entrado na casa, então essa versão foi acreditada. Ela só foi desfeita alguns meses depois, quando retornei à minha casa e fui mantida em cárcere privado. Nesse momento, tomei conhecimento também do que a vizinhança interpretou sobre aquele dia.
O que quer dizer com “cárcere privado”?
No momento em que cheguei do hospital, ele foi curto e grosso: não queria que a minha família nem mais ninguém se aproximasse de mim. Eu precisava reagir, estava em cadeira de rodas, tentando me adaptar, e não podia receber ninguém sem a autorização dele. Nesse período, que durou uns 15 dias, comecei a temer novamente pela minha vida, então solicitei que minha família conseguisse um documento, o de separação de corpos. Com esse documento, poderia sair de casa sem perder a guarda das minhas filhas. Caso contrário, poderia ser abandono de lar. Esse documento foi resolvido em cerca de 15 dias e, já próximo a minha saída de casa, fui quase eletrocutada por meio de um chuveiro. Na hora, imaginei que tinha sido um problema elétrico, mas depois, com as investigações, foi comprovado que ele havia feito aquilo. Ele tinha danificado propositalmente o chuveiro.
Como suas filhas lidavam com tudo isso?
Elas estavam em casa quando tudo ocorreu, mas eram pequenas demais. A mais nova não tinha dois anos, a mais velha não tinha sete, e a do meio, cinco. Com o tempo, foram entendendo o que tinha acontecido e sempre participaram muito na minha busca por justiça. Eu me reunia com mulheres para conversar, escrevia artigos, me expunha muito, e elas passaram a entender e defender a causa comigo.
Quando surgiu a ideia de transformar seu sofrimento em uma causa?
Bem, antes mesmo de ele tentar me matar, minhas amigas já tinham conhecimento sobre o fracasso do meu casamento. Elas me ajudaram muito, participaram mais diretamente dos períodos críticos. No ano seguinte ao fato, quando o processo policial foi concluído e viram que tudo aquilo que meu agressor tinha dito no primeiro depoimento não era concreto, pois ele não sabia mais o que tinha falado na primeira versão, é que as coisas foram se encaixando. Demorou praticamente oito anos até o primeiro julgamento, e nesse tempo comecei a me aproximar de movimentos de mulheres. Foi aí que encontrei uma motivação para continuar. Me coloquei em uma posição de cara lavada, sem medo nem vergonha de dizer que fui vítima de violência doméstica. Enfrentei muito machismo, com pessoas me perguntando: “O que a senhora fez para merecer isso?”.
Levou quase 20 anos para provar que a senhora foi vítima de violência doméstica, correto? Marco foi condenado a oito anos de prisão e cumpriu apenas 16 meses em regime fechado.
Na realidade, a punição aconteceu depois que o Brasil foi condenado internacionalmente pela maneira negligente com que tratava os casos de violência contra a mulher. A decepção com a Justiça brasileira foi enorme para mim e para toda a sociedade que acompanhava o caso de perto. Uma pessoa que tentou matar a esposa foi submetida a dois julgamentos populares, condenada nos dois, mas por conta de recursos protelatórios só foi presa por pressões internacionais, faltando seis meses para o crime prescrever. O tempo de prisão foi tão pequeno que não chega perto do que ele fez. Mas hoje essa história fica de lado. O importante, o que me motiva, é a criação da lei. Hoje o que me estimula é saber que pude fazer parte da história do Brasil.
Em 2010, Marco lançou um livro, A Verdade Não Contada no Caso Maria da Penha, no qual nega o crime, condena o Judiciário cearense e lhe chama de dissimulada. Seu ex-marido diz que o único erro que cometeu foi ter sido infiel, e que tudo teria sido uma armação sua por vingança. Chegou a ler o livro?
Não. Tomei conhecimento, mas não me abalei, pois ele é uma pessoa com imaginação muito fértil, capaz de criar uma história de um assalto para justificar o que ocorreu naquela noite. Ele pode escrever várias vezes o que quiser, eu não me preocupo.
Avaliando os 10 anos da Lei Maria da Penha, quais os principais avanços? E as barreiras?
Hoje, acredito que há um compromisso legítimo da sociedade em relação ao tema. Dados e estatísticas são fornecidos pela imprensa mostrando que mulheres estão denunciando mais. Mas ainda há muito para evoluir. Por exemplo, ainda há mulheres que não têm onde denunciar, mulheres que acham que, quando apanham, é porque mereceram – temos homens que acreditam nisso. E isso se dá porque a lei não está disseminada em todos os municípios brasileiros, e porque falta educação em relação ao tema.
O seu caso foge do estereótipo – o de que a violência doméstica ocorre em famílias de baixa renda, com pouca escolaridade.
As mulheres que vão às delegacias são as de baixa renda, pois são as que mais precisam desse serviço. Elas não podem pagar um advogado particular para acompanhar o processo. Quem tem uma renda melhor consegue sair da situação de violência doméstica sem muita exposição, e opta por isso até para preservar os filhos. A violência ocorre em todas as classes, mas acontece também, em muitos casos, de a mulher de classe média ou alta optar por ficar com o agressor pelo apoio à educação dos filhos. O marido banca o lazer, a escola, a faculdade, coisas que ela sozinha não teria condições de manter. Muitas têm dificuldade de se desvencilhar da relação por isso.
Machismo e igualdade de gênero são temas em evidência. A redação do último Enem foi sobre violência doméstica. Houve uma campanha nas redes sociais para denunciar “professores abusadores”, e, aqui no Sul, meninas protestaram para usar shortinho em escolas. Estamos evoluindo?
Claro que sim. Esses movimentos são importantes para pressionar os gestores públicos a promover mudanças, mas existe uma questão mais importante ainda: a educação. Precisamos trazer o tema para a sala de aula, colocar o assunto em pauta, desmitificar a superioridade do homem que predomina na cultura machista. Vejo que o primeiro despertar da educação para o assunto foi a prova do Enem.
De que forma os homens podem fazer parte dessa luta contra a violência?
Hoje já encontramos muitos homens comprometidos porque eles sabem que a violência pode atingir também suas filhas, suas netas. Nenhuma mulher está livre de ser vítima.
Como a senhora imagina que a lei vá funcionar no Brasil daqui a 10 anos?
A sociedade está no caminho certo, e um exemplo disso foi o número de eventos no 8 de março. O tema ganha visibilidade cada vez mais. É preciso que isso ocorra de forma mais frequente, é preciso cobrar mais dos gestores públicos, é preciso que a sociedade gere condições para que as mulheres saiam da condição de violência, dentro de todos os municípios, que elas conheçam cada vez mais os seus direitos. Acredito que daqui a alguns anos a lei será aplicada em todas as regiões, de forma mais homogênea.
Na sua avaliação, por que as mulheres ainda têm baixa representatividade na política? Dos 20 deputados filiados ao novo Partido da Mulher Brasileira, por exemplo, só dois são mulheres, e a presidente do PMB já avisou que a sigla não é feminista.
Acho que é porque agora é que elas estão tendo mais certeza e mais vontade de mudar. E também por aptidão. Eu, pelo menos, não gostaria de ser política (risos). Acredito que as dificuldades foram grandes para as mulheres chegarem aonde queriam. À medida que vão modificando e sendo facilitado o acesso às diferentes áreas, essa representatividade pode aumentar.
Ao mesmo tempo em que as mulheres estão mais ativas nas redes, como mostram campanhas como #primeiroassedio e Chega de Fiu-Fiu, ainda é frequente os homens reagirem com descaso, dizendo que elas estão fazendo “mimimi”. Por que é tão difícil reconhecer formas de abusos cotidianos contra a mulher?
Isso sempre existiu, mas mulheres tinham mais vergonha de dizer. Agora estão se dando conta de que os comportamentos são realmente abusivos, estão falando, denunciando. Isso tem que chegar a um fim. Ninguém é propriedade de ninguém. As mulheres estão falando mais. No meu tempo, ninguém nem sabia o que era violência de gênero. Antigamente, se falava que o fulano era um bom marido, mas batia na mulher. Como se bom marido significasse apenas prover casa e comida.