Correção: O projeto de lei 4.639/16, aprovado na Câmara dos Deputados na última terça-feira, permite "a produção, manufatura, importação, distribuição, prescrição, dispensação, posse ou uso da fosfoetanolamina sintética", mas não prevê a comercialização, como publicado anteriormente. A informação incorreta permaneceu publicada entre 17h54min de 9 de março e 15h05min de 10 de março de 2016.
Um texto polêmico conseguiu romper a obstrução da pauta na Câmara dos Deputados e obter aprovação unânime na noite desta terça-feira. O projeto de lei 4.639/16 autoriza a produção, a distribuição e o uso da fosfoetanolamina, conhecida como a "pílula do câncer", antes mesmo de concluídas as pesquisas que comprovem sua eficácia e segurança. Assinado por 25 parlamentares de diversas legendas, o PL foi submetido a votação simbólica, sem registro nominal, e recebeu apoio de todos os partidos. O próximo passo é a apreciação da matéria pelo Senado, antes de seguir para sanção presidencial.
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Desenvolvida pelo professor Gilberto Orivaldo Chierice, então ligado à Universidade de São Paulo (USP) em São Carlos, a substância foi distribuída gratuitamente a doentes durante mais de 20 anos, e se propagou a fama de que seria capaz de curar tumores malignos. O tema gerou intensa controvérsia nos últimos meses, provocando alvoroço entre pacientes, manifestações indignadas da comunidade científica – que condena a ausência de testes em humanos e a falta de comprovação de segurança e eficácia – e profusão de liminares para acesso ao composto por via judicial. A discussão acabou alcançando o Supremo Tribunal Federal, quando a decisão do ministro Edson Fachin de liberar as pílulas para uma paciente do Rio de Janeiro exaltou ainda mais os ânimos. Os governos de São Paulo e do Rio Grande do Sul anunciaram investimentos em pesquisas.
Desde a semana passada, a oposição prometia barrar todas as votações na Câmara até a instalação da comissão que vai analisar o processo de impeachment da presidente Dilma Rousseff. Parlamentares se aproveitaram do apelo emocional do tema para pressionar e dobrar os resistentes. Discursos destacaram que uma doença tão temida quanto o câncer demanda urgência e não pode esbarrar na burocracia estatal. Jair Bolsonaro (PP-RJ), um dos autores do PL, exaltou-se, gesticulando, na tentativa de agilizar o processo. Depois de muita negociação, ficou acordado que esta seria a única votação da noite. Na opinião do deputado Weliton Prado (PMB-MG), autor da proposta original, dois fatores foram determinantes para sensibilizar o plenário e permitir o desbloqueio da pauta: o Dia Internacional da Mulher, celebrado na terça, e uma reportagem exibida pelo Programa do Ratinho, do SBT, no final de fevereiro.
– Às vezes, a única esperança de vida das pessoas é a fosfoetanolamina. Elas não têm nada a perder, elas têm direito de acreditar. Até agora não se teve nenhum relato de que fizesse mal para a saúde. A quimioterapia, a radioterapia enfraquecem muito o organismo e podem trazer problemas. A Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) já sabe da fosfoetanolamina há muito tempo e não tomou nenhuma providência. O cigarro, que é uma substância cancerígena, é liberado, e para uma substância que há muito tempo se discute que faz bem à saúde não tem vontade para que sejam realizados todos os testes clínicos. Com certeza tem aí um forte interesse econômico. A indústria farmacêutica movimenta bilhões – argumenta Prado.
A redação afirma que os pacientes com câncer poderão, voluntariamente, utilizar a substância sintética desde que obtenham um laudo médico comprovando o diagnóstico e assinem (eles próprios ou um representante legal) um termo de consentimento e responsabilidade. A opção pela fosfoetanolamina não exclui o direito de acesso a outros tratamentos. Uma das poucas vozes dissonantes na Casa, o médico Luiz Henrique Mandetta (DEM-MS) criticou os colegas por esquecerem que "a ciência é feita de pesquisa".
– A maneira como se encaminha esse tema é uma maneira extremamente perigosa de se fazer ciência. Não se pode liberar uma substância sem saber o efeito colateral. Não se pode liberar uma substância sem saber qual é a dosagem para uma criança, para uma pessoa idosa, para uma mulher. Não se pode liberar uma substância sem saber para qual tipo de câncer ela eventualmente estaria indicada. Essa maneira de se fazer ciência retrata o abandono e o descaso com este país – discursou Mandetta.
Chefe do Serviço de Oncologia Clínica do Instituto Brasileiro de Controle do Câncer, Auro Del Giglio externa a estupefação de grande parte da comunidade médica diante da notícia do avanço da tramitação do PL 4.639/16 no Congresso Nacional.
– Fiquei surpreso, achei intempestivo. Não sabemos se funciona, se é tóxico, se interfere no tratamento convencional. Não sabemos nada a respeito da pílula. Estamos no escuro. Não podemos dizer que não funciona, mas também não podemos dizer que funciona – avalia o oncologista. – Tantas drogas úteis estão com dificuldades de serem aprovadas, e essa não. O que determina o empenho político para aprovar algo? A eficácia ou a notoriedade? – questiona.
Segundo Del Giglio, muitos pacientes chegam às consultas solicitando uma prescrição para as pílulas.
– A coisa mais difícil que tem é tirar a esperança de alguém. Então, a relação de confiança entre médico e paciente deverá prevalecer até que os estudos sobre a fosfoetanolamina ganhem corpo e possam deixar mais claro esse cenário –completa o especialista.