O repórter é um indivíduo cujo dia a dia consiste em entender, esmiuçar e explicar nos mínimos detalhes assuntos sobre os quais ele não tem nenhum interesse. Mas aqui e ali aparecem chances de lidar com algum tema predileto. Por exemplo: certa ocasião, recebi a incumbência de preparar uma matéria sobre bibliotecas. Sentado diante de um dos entrevistados, caneta e bloco de anotações em punho, fui brindado com informações de cocheira sobre uma campanha que mobilizava figuras proeminentes da intelectualidade local - a construção de uma nova sede para a Biblioteca Pública do Estado. Detalhe: eles queriam evitar que o prédio saísse na Zona Norte, como previsto, para situá-lo no centro de Porto Alegre, em quarteirão ocupado por um edifício feioso dos Correios. Suspendi a caneta no ar por um instante, espantado, mas consegui esconder minha decepção em nome da isenção jornalística.
Itamar Melo: Porto Alegre, uma apóstola da Igreja Universal do Shopping e do Condomínio
Analisem a situação. O Estado do Rio Grande do Sul mantém a vergonhosa marca de seis bibliotecas públicas em um território de 282 mil quilômetros quadrados - o que é mais de duas vezes o tamanho da Inglaterra. Três dessas bibliotecas, o que nos meus cálculos representa algo próximo aos 50%, foram instaladas, acreditem, nos apertados dois quilômetros quadrados do centro da Capital.
Então, na rara ocasião em que surge a oportunidade de construir mais uma, onde é que os luminares a reivindicam? No Centro, claro.
Todos nós sabemos que nenhuma biblioteca vai ser construída, mas evoco o episódio porque ele me parece sintomático de uma doença grave que acomete Porto Alegre: macrocefalia. Casas de cultura, museus, bibliotecas, teatros, memoriais, cinemateca - por aqui tudo fica no Centro. Aos outros 80 bairros resta uma condição semicolonial. São lugares para morar e gastar, pouco mais.
Essa é uma característica letal para a cidade, porque espaços sofisticados, como os equipamentos culturais e de lazer, têm um potencial notável para estimular em seu entorno a diversidade e a qualidade urbanas de que Porto Alegre tanto carece. Levando em conta o quanto é incomum aparecer algum investimento nessa área, no cenário de penúria financeira em que vivemos, deveríamos ser extremamente criteriosos ao definir onde fazê-lo.
Itamar Melo: manual para piorar Porto Alegre
A opção de Porto Alegre, no entanto, tem sido a de empilhar tudo no mesmo lugar, o já saturado Centro, desperdiçando oportunidades preciosas. Veja-se o caso do Teatro da Ospa. Como era de imaginar, esse empreendimento está previsto para a zona central da cidade. Pior do que isso, foi colocado em uma área roubada a um parque, cercada de avenidas, onde não pode ter nenhum impacto positivo na vizinhança, pois não há vizinhança. Por que não no Rubem Berta ou na Vila Cruzeiro?
Em uma zona periférica, além de representar justiça social, um investimento desse gênero poderia ter um impacto multiplicador tremendo. Atrairia gente de outras partes, injetando vitalidade em áreas inóspitas. Criaria e valorizaria novos polos de interesse. Os moradores desses locais talvez já não se revoltassem tanto com a sensação de abandono pelo poder público (revolta que em algus casos se manifesta na forma de vandalismo e de pichações contra uma cidade da qual não conseguem se sentir parte). Com o dinamismo e a movimentação trazidos pelo empreendimento, estariam criadas condições para que surgissem ao redor uma série de atividades novas - comerciais, culturais e gastronômicas. Haveria uma âncora para a qualificação do bairro.
Esse é o modelo que foi adotado, por exemplo, na antiga capital colombiana da droga, Medellín. Ao decidir onde situar um centro cultural de arquitetura arrojada, as autoridades locais optaram por uma das favelas mais violentas da cidade. Antes zona estigmatizada, ela virou atração turística e se reinventou. Com uma iniciativa desse tipo, Medellín arrisca se transformar em uma daquelas cidades que todo mundo ama visitar, porque não são só um bairro, porque oferecem riqueza de sensações aonde quer que se vá.
Essa questão deveria ser tratada como prioridade porque não restam muitos terrenos de porte ainda desocupados na malha urbana de Porto Alegre. É preciso convertê-los em benefício da coletividade antes que virem shoppings ou condomínios. Só assim seremos uma cidade de verdade.