Por Roger Lerina
Jornalista
O título deste texto é um bordão: o dono do nome costumava se apresentar assim na introdução das muitas atividades culturais e jornalísticas que conduziu ou participou em 40 anos de trajetória profissional. Paulo Moreira nunca foi um pavão, mas também não era um humilde franciscano: sabia que seu conhecimento enciclopédico e sua memória elefantina sobre muitos temas – a música em particular, o jazz em especial – eram coisa admirável e rara. Por isso, a saudação característica tinha também um sabor de blague: todos na plateia obviamente sabiam quem era Paulo Moreira.
Esse cartão de visitas também batizará o livro reunindo memórias, histórias, opiniões e comentários de Paulo Moreira, atualmente em fase de finalização. O volume com textos em primeira pessoa do jornalista cultural e radialista tem edição de Iria Pedrazzi e design gráfico de Clô Barcellos e Carlos Fetter, incluindo também um ensaio fotográfico de Marco Nedeff – com imagens como o belo retrato acima, que ilustra este texto, mostrando todo faceiro o disco Rendezvous in New York autografado pelo grande pianista estadunidense de jazz Chick Corea, um dos itens da copiosa e preciosa discoteca do fã gaúcho. O plano era lançar Pra Quem Não me Conhece, Meu Nome é Paulo Moreira com a presença do autor, mas ele "partiu antes do combinado" – como dizia o músico, ator e apresentador Rolando Boldrin. Depois de uma luta de quase duas décadas contra um quadro de insuficiência renal agravado por outros problemas de saúde decorrentes, Paulo descansou no último domingo (17/12). O projeto do livro, claro, segue em frente, mas agora a urgência arrefeceu e a edição será finalizada com o capricho e a atenção que o homenageado merece.
Integrante da Associação de Críticos de Cinema do RS (Accirs), leitor glutão – estava sempre sovaqueando um livro, comumente uma biografia –, Paulo Moreira estava em seu elemento sobretudo no universo musical. Entre outras atuações na área, produziu o programa radiofônico Jam Session, apresentado por Ruy Carlos Ostermann na rádio 102.3 FM, escreveu críticas no jornal Correio do Povo, apresentou palestras, debates, audições comentadas e cursos de jazz e rock em instituições culturais como a Casa das Artes Villa Mimosa, em Canoas, e as porto-alegrenses StudioClio e Instituto Ling, foi mestre de cerimônias do Poa Jazz Festival. Na FM Cultura deixou seu maior legado: durante quase 20 anos, comandou o Sessão Jazz, responsável por apresentar o gênero a gerações de neófitos – inclusive muitos dos músicos hoje destacados no cenário local – e recrudescer entre os aficionados a paixão jazzística com novidades e recuperações históricas. A partir de 1999, de segunda a sexta, as noites na rádio pública eram animadas pela entrada no ar sempre empolgada do produtor, redator e apresentador do programa, que, além de tocar a fina flor do jazz e da música instrumental de todos os tempos – com as devidas citações escrupulosas a fichas técnicas e informações sobre as circunstâncias das gravações executadas –, ainda costumava abrir o microfone tanto para artistas locais quanto nomes nacionais e mesmo estrangeiros em passagem pela capital gaúcha.
Para além de referência incontornável da cultura jazzística em Porto Alegre, Paulo Moreira era uma figura intensa. Com o mesmo ardor que defendia seus julgamentos estéticos – às vezes embasados em argumentos robustos, noutras assentados apenas na idiossincrasia ou em pura teimosia –, assim ele se relacionava social e afetivamente com as pessoas. Dedicava a qualquer conversa vadia de bar com os amigos a mesma contundência inflamada com que exaltava gigantes da estirpe de John Coltrane, Miles Davis e Pat Metheny ou desqualificava ícones como Chet Baker – especialmente o cantor – e um certo jazz latino que considerava muito “salsero”. Quando o futsal ainda se chamava futebol de salão, presenciei verdadeiras possessões de “Pablito, el Loco” na quadra indignado com o desempenho dos companheiros de equipe – goleiro como ele, por sorte nunca fui alvo de suas diatribes porque sempre estávamos em lados opostos. Ninguém, entretanto, levava muito a sério essas explosões: todos sabíamos tratar-se apenas de uma maneira de extravasar tanta paixão contida no peito – o que lhe rendeu outro apelido folclórico: “o ódio mais alegre do Brasil”, epíteto do qual se jactava e inclusive fazia questão de propalar.
Em março passado, esse fiel amigo dos amigos recebeu um agradecimento de muitos daqueles que conseguiu cativar com seu afeto e conhecimento: o Festival Paulo Moreira reuniu 78 artistas em 16 grupos musicais, que se apresentaram em quatro casas da Capital onde costumeiramente o jazz e a música instrumental encontram guarida. A renda desses quatro dias de shows foi destinada ao tratamento de saúde do jornalista – mas talvez o mais gratificante resultado dessa ação entre amigos tenha sido a dose poderosa de alegria e ânimo que a maratona musical injetou no homenageado.
Paulinho já faz muita falta. Estoicamente, jamais se queixava da saúde. E, por justiça a esse admirável desprendimento, a despedida aqui é em tom solar, citando mais um de seus bordões recorrentes – lembrado também pelo igualmente jornalista e jazzófilo Márcio Pinheiro no desfecho do sensível texto que dedicou no Facebook ao amigo comum: “Vai um abraço, Paulo Moreira!”.