Por Boca Migotto
Cineasta e pesquisador, autor de “Um Certo Cinema Gaúcho de Porto Alegre ou Como o Cinema Imagina a Capital dos Gaúchos” (Ed. Pragmatha, 2022)
Perdemos um gigante. Foi o que ocorreu no último sábado (6/8), com a morte do ator Sirmar Antunes. Havia dois meses, Sirmar frequentava minha casa diariamente, por isso sua morte me pegou de surpresa. Ao contrário do que o leitor possa entender da afirmação, devo esclarecer que, infelizmente, Sirmar nunca pisou, presencialmente, na minha casa. Não éramos tão próximos. Obviamente eu o conhecia, conhecia sua carreira e tínhamos inúmeros amigos em comum. Mas nunca trabalhei com ele, não nos frequentávamos pessoalmente e, na verdade, raras vezes tive o privilégio de conviver com o ator. Mesmo assim, em especial nos últimos dois meses, Sirmar frequentava minha casa com relativa insistência.
Leonardo Machado – este sim, amigo próximo – também ator que nos deixou prematuramente, sempre me perguntava:
– O que tu preferes, uma boa morte ou um legado?
A resposta, acredito, está na vida e na obra de Sirmar Antunes. É inerente à capacidade inata dos artistas da interpretação tornarem-se próximos e eternos. O Leo já nos deixou há quatro anos. O Sirmar há apenas uma semana. Ambos compartilharam os sets de filmagem inúmeras vezes. Por conta disso, serão lembrados, também, através dos seus personagens.
Foi assim que Sirmar frequentou minha casa nos dois últimos meses. Na pele de diferentes personagens nos filmes de Tabajara Ruas. Envolvido na realização do documentário A Próxima Estação de Tabajara Ruas, revisitei sua obra e me aproximei do Sirmar. A ideia é homenagear Tabajara Ruas, que está completando 80 anos. Após a morte inesperada de Sirmar, no entanto, também não deixa de ser uma homenagem ao nosso “lanceiro negro”. Na terça-feira (9/8), lançamento do documentário, Sirmar foi lembrado por todos. Pudera, ele está em todos filmes de Tabajara. Mas Sirmar vai muito além.
O menino que, desde cedo, quis ser ator, persistiu até vir a ser um dos rostos mais enigmáticos do nosso cinema. Negro, filho de pais humildes, órfão de mãe aos 17 anos, logo cedo percebeu que ser artista não seria tarefa fácil. Sirmar contava que o pai o ajudou enquanto pôde, mas chegou o momento em que foi necessário orientar o filho para “uma carreira de verdade”. Sirmar sabia que o pai estava certo. Em busca de certa estabilidade, foi ser carteiro. Mesmo assim, não deixou o sonho de lado e, nos Correios, junto a colegas, montou um grupo de teatro amador. Sirmar insistiu. Queria ser como Grande Otelo, seu ídolo e principal referência. E insistiu tanto que conseguiu. Depois de algumas pontas como figurante, uma tentativa de inserção no mercado paulista, voltou ao Rio Grande do Sul para interpretar Juan Bispo em Lua de Outubro (1998), de Henrique de Freitas Lima. Desde então, foi chamado por muitos diretores para viver diversos personagens. Costumava dizer que “era ator feito a facão”, e que ele mesmo criara as oportunidade que teve no teatro, na TV e no cinema. Suas conquistas repercutem a presença, cada vez mais significativa e necessária, do artista negro no cinema gaúcho. Sirmar era um ativista da luta antirracista. Dizia que a representatividade do negro no audiovisual era fundamental e, por isso, tinha necessidade de se ver na tela pois, através dele próprio, enxergava também seus pares.
Foi o primeiro ator a receber o Prêmio Leonardo Machado, em 2021, no Festival de Gramado. Coincidência ou não, ao revisitar inúmeras vezes a obra de Tabajara Ruas, me chamou a atenção a sequencia final do seu mais recente filme, A Cabeça de Gumercindo Saraiva (2018). Nela, os personagens de Leo e Sirmar se despedem do major Ramiro de Oliveira (Murilo Rosa), após ter-lhes poupado a vida. O filho de Gumercindo, Leo, então, diz que estão quites. “Ficamos assim, vida por vida.” O major pergunta o que isso significa, e Caminito (Sirmar) lhe responde: “Significa que nós, bárbaros, vamos embora”. Na última cena do filme, Leo e Sirmar, montados em seus cavalos, somem na neblina.
Se ambos desapareceram nas brumas dos Campos de Cima da Serra, através das lentes de Tabajara Ruas, permanecem juntos, para sempre, nas nossas casas e na nossa história, através do cinema. No caso de Sirmar, sua pele negra projetada sobre nossas telas brancas é, também, a representação icônica da resistência do povo negro ao apagamento da sua importância histórica para este país. Sirmar morreu – e talvez não tenha sido uma boa morte, pois ainda havia muitos motivos para que continuasse conosco –, mas seu legado certamente permanecerá, ainda, por muitas gerações.
Sirmar Antunes presente!