Por Sergius Gonzaga
Professor, coordenador de Literatura e Humanidades na Secretaria da Cultura de Porto Alegre
Colégio Israelita Brasileiro, 1973. Professor recém contratado, deixo meus alunos fazendo alguns testes e caminho pelos corredores da escola, atraído pela voz tonitruante de Júpiter que vem de uma das salas.
A porta está aberta e eu observo um corpulento gigante loiro que, em alta velocidade, anda por entre as classes, falando e acendendo cigarros, um no outro, freneticamente. É uma aula sobre a Grécia Clássica. Com clareza e brilho, o professor sintetiza o Século de Péricles, mas intercala os fatos históricos com referências à Literatura, à Filosofia, à Arte, às mentalidades e aos costumes, compondo um quadro densamente variado da civilização matriz do Ocidente.
De quando em quando, insere em sua fala um episódio cômico, uma observação sutil e pitoresca que quebra a seriedade da exposição e leva os jovens a gargalhar. É como se fosse um romancista virtuoso, capaz de traçar o painel totalizante de uma época e revelar, subitamente, em seus contornos o inesperado e o prosaico que ajudam a configurar a anatomia de um período histórico.
Estávamos todos hipnotizados.
Assim conheci Voltaire Schilling. Assim me tornei seu admirador e seu amigo para sempre. Algum tempo depois, descobri a extraordinária erudição que acumulara e que lhe brotava espontaneamente, em linguagem coloquial e persuasiva. Parecia saber tudo: das grandes pestes às grandes descobertas; das legiões romanas à vida dos camponeses medievais; dos expoentes renascentistas aos pintores barrocos; dos filósofos do Iluminismo aos cientistas do século 19; dos escritores russos aos poetas modernistas; das guerras mais sangrentas às revoluções que abalaram o mundo.
Parecia saber tudo porque tentava ler todos os livros já escritos, prisioneiro de uma inesgotável ânsia de conhecimento que o levava a devorar cerca de 200 páginas diárias das mais diversas áreas. Dessa forma, enriquecia continuamente aqueles vastos painéis que condensavam os momentos decisivos dos povos e das civilizações. Dotado de assombrosa memória, assimilava tudo o que lia, a tal ponto que podia discorrer horas e horas sobre infinitos assuntos. Como o Voltaire da Ilustração, adornava as falas com tiradas irônicas e comentários satíricos, resultantes de sua verve inventiva.
Ouvi-lo constituía um prazer singular e por isso multidões compareciam às palestras que ministrava. Muitos amigos frequentavam-lhe a casa em busca de sua prosa fulgurante. Era como se mergulhássemos naqueles tempos passados que, descritos com perícia, impregnavam-se de uma aura vital, conduzindo-nos a viagens eletrizantes, em que o som e a fúria da existência pareciam adquirir alguma lógica, algum sentido. Saíamos desses encontros acreditando em Cícero: "A História é a mestra da vida".
Paradoxalmente, a qualidade verbal de Voltaire residia mais na oralidade do que na escrita. Suas dezenas de obras de divulgação histórica são irrepreensíveis, mas - comparadas às falas - carecem dos espetaculares lampejos irônicos e da multiplicidade assombrosa de relações estabelecidas entre o tema central e as informações paralelas. Segundo um amigo, a angústia e a pressa de apoderar-se da totalidade do saber universal, levaram-no a concentrar-se, antes de tudo, na leitura e não na escritura.
Só que houve um outro Voltaire. E nem todos o conheceram. Era um sujeito encantador, alegre, apaixonado pela matéria concreta do real, por vezes pantagruélico, que se entregava com volúpia a la joie de vivre e que desfrutava dos prazeres terrenos sem culpa, como um frade licencioso do Renascimento. Estive com ele em festas do chope, kerbs e casas noturnas, nas quais, surpreendentemente, transformava-se em bailarino audaz, gracioso, saltitante, atraindo mulheres que esvoaçavam em seus braços e experimentavam (segundo me disse uma delas) deliciosa sensação de extravio e arrebatamento. Usava uns sapatos especiais para pistas enceradas, com plaquetas de metal na ponta das solas, facilitadoras de passos acrobáticos.
A inteligência e o humor acabaram por convertê-lo em um homem fascinante. Viveu paixões candentes, excessivas, quase melodramáticas: amou muitas mulheres e, nos intrincados jogos do coração, sofreu e fez sofrer. Quem o visse submerso em milhares de livros, não imaginaria a dimensão dionisíaca e folhetinesca de sua existência.
A velhice, o princípio de cegueira, as dores no corpo, a dependência física e a quase imobilidade foram um castigo injusto para alguém tão generoso e tão disponível à ciranda das paixões humanas. Quando Cláudio Moreno me noticiou a sua morte, pensei que o gigante Voltaire Schilling enfim se livrara dos sofrimentos corpóreos, mas que sua figura, luminosa e magistral, continuaria reverberando na memória de todos os que tiveram a sorte de conhecê-lo.