Rosangela Mori Schaurich teve de começar a aprender a viver sozinha depois de 42 anos de casamento. A forçosa nova etapa teve início em março de 2022, quando o marido não resistiu a complicações de problemas cardíacos. Apesar da saúde debilitada do companheiro, que teve diversas hospitalizações no ano anterior, Rosangela sentiu o choque da morte.
— Nunca estamos preparados para perder alguém, ainda mais uma pessoa que teve uma vida muito intensa comigo. A finitude nos dá consciência de que temos que viver bem o aqui e o agora, fazer o máximo possível, porque amanhã a gente não sabe se vai estar vivo — reflete a psicóloga de 67 anos.
A maior dificuldade foi enfrentar questões da vida prática, como papéis e contas a pagar. Tudo que era conversado e dividido por dois até então passou a ser responsabilidade apenas de Rosangela.
— Tive um sentimento de incapacidade: “Será que vou dar conta?". Isso me forçou a me organizar, a colocar os pés no chão. As coisas passaram a ser só comigo — recorda.
Com a proximidade do Dia de Finados, cabe destacar que a viuvez e o luto na terceira idade têm peculiaridades relativas a essa fase da vida. Quem envelhece precisa ir se habituando a um ritmo mais intenso de perdas, e não só de familiares e amigos ao redor. O corpo muda, levando a reflexões a respeito da finitude.
Entre múltiplos fatores, é necessário se despedir do corpo e do rosto jovens, da carreira, dos anos mais produtivos, da mobilidade sem entraves. Para a mulher, a transição para a velhice é ainda mais marcante com a menopausa. Deve-se entender que tudo isso faz parte do ciclo da vida, pontua Ângela Seger, psicoterapeuta de família e de enlutados e professora da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS).
Não temos controle sobre tudo. Por mais que a gente se prepare, as coisas vão acontecer, não temos todas as garantias. Posso cuidar muito da minha saúde e sofrer um acidente. Posso ser muito amorosa com meus filhos e eles irem morar em outro país ou terem outros distanciamentos afetivos. Tem coisas que vão acontecer se vivermos até a velhice, coisas que só acontecem com quem chega lá
ÂNGELA SEGER
Psicoterapeuta de família e de enlutados e professora da PUCRS
A forma como cada um lidou com as diversas perdas que ocorreram ao longo da vida será determinante nessa faixa etária.
— O processo de luto nos acompanha: morte de pessoas, animais de estimação. Perder faz parte da vida. Aprender a lidar com perdas, dar-se conta de que morte e vida são indissociáveis, nos dá uma bagagem. Perder algo de estima, que tem significado importante, pode ser até mesmo um objeto, produz um processo de luto. Luto é uma reação natural a uma perda que envolve o emocional, a cognição, o social — explica Ângela.
O luto na terceira idade requer mais cuidados e atenção do próprio enlutado e daqueles que o circundam, enfatiza a psicóloga Denise Cápua Corrêa, especialista em luto e coordenadora administrativa do Cora — Núcleo de Luto do Centro de Estudos da Família e do Indivíduo (Cefi) de Porto Alegre.
— Um luto dentro do processo de envelhecimento, como a perda do parceiro, é mais complexo. Nossa rede de apoio é um dos fatores que podem facilitar o andamento dos processos de luto, e o parceiro, a pessoa que está ali do nosso lado a vida inteira, pode ser justamente uma pessoa importante da nossa rede. Muitas vezes, o casal tem uma história de vida de décadas. Em todas as perdas, um pedaço da gente vai junto, um pedaço da nossa história, quem a gente é para o outro — reflete Denise.
Com o falecimento de um companheiro, é preciso reposicionar a relação que termina: antes ela era externa, agora terá de ser introjetada.
— Quem era essa pessoa, que tipo de relação eu tinha com ela, que falta ela faz na minha vida? Precisamos de tempo para entender isso, ainda mais se for uma morte abrupta. Há necessidade de adaptação e transformação. Somos uma pessoa antes de perder e outra depois. Nos transformamos interna e externamente. Esse processo demanda tempo — observa Ângela.
O contexto em que o idoso está inserido — fora do mercado de trabalho, com os filhos envolvidos com suas próprias vidas, mais solitário — impacta muito esse processo. Existe o risco de o enlutado ficar muito sozinho, o que demanda apoio.
— O suporte pode vir da família, dos amigos, de um grupo de mães, de um grupo de que a pessoa faça parte ou possa vir a fazer, até mesmo um grupo de enlutados — sugere Ângela.
Para Rosangela, as pessoas com quem cruzou pelo caminho foram fundamentais para dar conta dos compromissos a honrar e também da elaboração da morte do marido.
— Encontrei pessoas que se compadeceram da minha situação, me estenderam a mão. Isso tem um significado imenso, faz uma diferença na vida da gente. Emocionalmente, busquei muito os amigos. Eram pessoas para quem eu podia ligar a qualquer momento, encontrar, estar junto — lembra a viúva, que se aproximou dos ex-colegas de faculdade do marido.
Para quem passa por situação semelhante, Rosangela sugere “dar tempo ao tempo”:
É tão banal isso, mas tem que deixar o tempo agir. Quando quer chorar, chora. Quando quer rir, ri. Tenho momentos de risadas, mas, do nada, ouço uma música e desabo a chorar. Tem que deixar fluir os sentimentos, não censurar, ser flexível, baixar a guarda. Seguir a vida. Não é nada fácil de conseguir sair.
ROSANGELA MORI SCHAURICH
Psicóloga, ficou viúva após quatro décadas de casamento
O sofrimento mais agudo tende a ir diminuindo. Caso o enlutado esteja em intenso sofrimento, que atrapalhe ou impeça o autocuidado, recomenda-se que passe por uma avaliação.
— O luto vai ter o tempo de que a pessoa precisa. Temos que ficar atentos a quem está em isolamento total, não aceita receber ninguém, deixou de tomar medicação, chora compulsivamente, não se alimenta, dorme o dia inteiro. A saúde do idoso descompensa mais rapidamente. Ele não necessariamente precisa de psicoterapia, mas é bom passar por uma consulta, a família pode ir junto. Não significa que o luto não está sendo natural, ele pode ser bem intenso, mas é bom dar uma olhada — orienta Ângela.
Como encarar o luto
- O enlutado precisa falar sobre o que está sentindo e não deve se isolar.
- É essencial manter a rotina de alimentação, hidratação, sono, medicamentos e higiene pessoal.
- Rituais são importantes. Não deixe de ir a velórios e cerimônias de despedida, a menos que não haja condição física ou emocional.
- Os familiares têm papel fundamental como suporte emocional e também para averiguar se o enlutado está conseguindo se organizar nas tarefas básicas do dia a dia.
- A espiritualidade pode ser um recurso útil e que faz sentido em um momento de dor intensa pela morte de alguém.
- Se houver ideação suicida, é preciso procurar ajuda imediatamente.
Procure ajuda
Caso você esteja enfrentando alguma situação de sofrimento intenso ou pensando em cometer suicídio, pode buscar ajuda para superar este momento de dor. Lembre-se de que o desamparo e a desesperança são condições que podem ser modificadas e que outras pessoas já enfrentaram circunstâncias semelhantes.
Se não estiver confortável em falar sobre o que sente com alguém de seu círculo próximo, o Centro de Valorização da Vida (CVV) presta serviço voluntário e gratuito de apoio emocional e prevenção do suicídio para todas as pessoas que querem e precisam conversar, sob total sigilo e anonimato. O CVV (cvv.org.br) conta com mais de 4 mil voluntários e atende mais de 3 milhões de pessoas anualmente. O serviço funciona 24 horas por dia (inclusive aos feriados), pelo telefone 188, e também atende por e-mail, chat e pessoalmente. São mais de 120 postos de atendimento em todo o Brasil (confira os endereços neste link).
Você também pode buscar atendimento na Unidade Básica de Saúde mais próxima de sua casa, pelo Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (Samu), no telefone 192, ou em um dos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) do Estado. A lista com os endereços dos CAPS do Rio Grande do Sul está neste link.