Nossa despedida foi diante de uma mesa de aço inox, em uma casa antiga do bairro Santa Cecília, em Porto Alegre, que eu dificilmente conseguiria localizar outra vez porque ali entrei de cabeça baixa, abraçada em uma caixa de transporte com a alça quebrada.
Lembro do reboco aparecendo em uma das paredes do consultório, o que combinava com o aspecto geral de certa decadência. Lembro do veterinário fazendo tudo muito rápido, acelerando o fim do (nosso) pouco tempo que restava. Lembro do peso do corpo dela no meu ombro esquerdo, encaixada ao lado do pescoço, sob a minha cabeça, enquanto eu cantava Estrela, Estrela, de Vitor Ramil. "É bom saber / Que és parte de mim / Assim como és / Parte das manhãs."
Lembro da mão nervosa do médico segurando o estetoscópio entre as patinhas dianteiras, procurando os batimentos cardíacos. Lembro que foi muito rápido, mais rápido do que ele disse que seria.
Eram quase 16h de 3 de abril de 2024, quarta-feira, quando fui forçada a começar a descobrir como viver em um mundo sem a Bia. Deveria estar no trabalho àquela hora, mas tive que me ausentar para ver minha gata, uma tigradinha de 11 anos e meio, morrer.
Bia chegou em meados de novembro de 2012, pouco depois do meu aniversário. Fora resgatada com a mãe e os irmãos do forro de um telhado. Estava com estimados dois meses de vida. Cabia na palma da mão, quase sumia debaixo do braço. Era para ter sido batizada de Beatriz, mas optamos pelo apelido diante da pergunta objetiva da veterinária na primeira consulta, querendo saber como, de fato, ela seria chamada no dia a dia. Seria pela forma mais curta, respondemos.
— Então é Bia — sentenciou ela, tomando nota na caderneta de vacinação.
A filhotinha passou as primeiras 24 horas na nova casa sem emitir um único som. "Um gato que não mia", pensei, estranhando aquele mutismo. Vencida a prova inicial de silêncio, ela não só começou a miar como se tornou a gata mais conversadeira que já conheci. Sabe aquelas que sempre respondem ao que a gente pergunta, em diferentes volumes e entonações, como se fosse interlocutora em uma conversa de verdade? Era assim.
Sociável, ela não se escondia de estranhos nem fugia de cães. Pedia para passear no corredor do prédio, arranhando a porta do apartamento, e se demorava nos capachos das portas dos vizinhos, se esfregando ou afiando as unhas. Toda vez que eu chegava em casa, Bia me esperava na porta, como se saudasse meu retorno.
— Cadê o bebê da mamãe? — perguntava eu, emendando apelidos e frases cheias de diminutivos, na linguagem boba que usamos para falar com os pets.
"É um luto não reconhecido. A gente tende a silenciar, a não falar mais. Se você disser que perdeu um amigo, terá apoio. Se contar que perdeu um animal, vão te mandar adotar outro."
FABIANA NASCIMENTO
Psicóloga
Ela então seguia para a cozinha, me chamando para acompanhá-la, e se atirava no chão, mostrando a barriga laranja e se virando de um lado para o outro. Era o nosso ritual de todas as vezes. Logo ela se postava pedindo sachê. Tinha fases mais preguiçosas, em que comia deitada na frente do prato, algo que combinava muito com a personalidade dela. Nos períodos mais ativos, batia com a pata na borda da tigela, com urgência para ser servida.
Amava colo. Não conheci outro gato que gostasse tanto, tanto de colo quanto ela. Passavam-se apenas segundos entre o momento em que me sentava no sofá e o pulo dela sobre mim. Se eu cruzasse as pernas ou deitasse, ela se acomodava sempre, não importando a irregularidade do "terreno".
A certo ponto da vida, Bia ganhou a companhia de Fafá, uma escaminha que resgatei da rua, de um prédio perto do trabalho. Depois de uma semana indignada, escondendo-se sob a manta que cobria o sofá, a tigrinha aceitou a irmã. Como toda dupla de gatos, elas volta e meia se engalfinhavam e trocavam tapas na cara, mas sempre nutriram uma enroscada proximidade, especialmente no local preferido para dormir: uma caminha cor de rosa estampada com unicórnios. Fafá partiu antes, vítima de um câncer que a tirou de nós poucos dias após o diagnóstico. O pesar de Bia ficou evidente nos miados longos e lamentosos no quarto escuro.
"Emocionalmente, adoeci junto dela"
No decorrer dos anos, percebi mudanças. O gato vai ficando mais parado, engorda. A agilidade também diminui. Apesar do gosto por lugares altos, algo tipicamente felino, Bia sentia uma dificuldade crescente para saltar e aterrissar. Deixou de subir no topo do armário da cozinha e no guarda-roupa. Chegou um momento em que até a máquina de lavar ficou alta demais. Presenteei-a com uma caminha de janela com ampla vista para o Menino Deus, onde ela chegava fazendo escala com um pulo curtinho na estante.
"Para eu entender o tamanho da dor, tenho que entender o tamanho do amor. Tem pets que representam muitos papéis na vida do ser humano. Cada um é que sabe da sua dor."
JOELMA RUIZ
Psicóloga
Bia teve poucos episódios que exigiram consultas com o veterinário: uma ou duas cistites, uma verruga retirada em cirurgia e, o mais grave até o início de 2023, tríade felina. Passamos a fazer exames de acompanhamento periódicos, e foi num desses check-ups que apareceu coisa pior, em meados de março passado. O gato é um bicho independente, "autolimpante", pode passar o dia inteiro sozinho sem nem perceber a ausência do tutor, não dá trabalho. Mas um gato doente é um tormento: reluta para tomar remédio, se esconde, não come. Emocionalmente, adoeci junto dela.
Bia definhou ao longo de três semanas, repletas de consultas, exames e visitas à emergência. Nesse período, comemorei apenas uma boa notícia, que nem era tão boa assim em um quadro geral tão preocupante, mas fiquei exultante por conseguir tirá-la de uma internação e levá-la de volta para nossa casa.
O gato doente vira outro gato. Nos detalhes, o tutor sabe que tem algo errado. Ela deitava em lugares diferentes, em poses inusuais. Virava a cara para o sachê que eu forçava em uma colherinha. Comia cada vez menos, até chegar ao ponto de eu saber quantos grãos de ração havia conseguido que ela aceitasse. Até parar de comer completamente.
Não tive tempo de saber, com certeza, o que levou meu grande amor. Os resultados dos testes de sangue mostravam que o inimigo avançava com velocidade. Havia uma forte suspeita de que fosse câncer. Não importa mais. O que ficou é uma saudade insuportável, que me bloqueia a garganta e transborda dos meus olhos quando vejo um gato na rua ou encontro pelos dela nas minhas roupas e nos lençóis. Este texto foi escrito a conta-gotas, com sucessivas pausas e retomadas, porque para mim ainda é muito difícil pensar e falar nela sem chorar.
Quanto se pode amar um gato? Quão imenso pode ser o chamado amor interespécies? Por que o processo de luto que advém dessa perda não é reconhecido?
"Quer amor melhor que esse, incondicional, 24 horas?"
Especialistas com quem conversei para compor esta reportagem dão a medida da tristeza que a morte de cães e gatos é capaz de provocar nos tutores: a dor é do tamanho do amor. Logo, para um grande amor, uma grande dor. Os bichos são seres que passam as 24 horas do dia em nossa companhia ou a nossa espera. Não contestam o que dizemos. Em um mundo mediado por telas, nos olham diretamente nos olhos. Tomar conta deles é como proteger um bebê, compara a psicóloga especialista em luto Joelma Ruiz, que tem cerca de 90% da agenda de atendimentos ligados ao luto pet.
— Além de a gente cuidar do animal, ele cuida da gente. Quanto mais eu cuido de alguém, mais me apaixono por alguém. Nós, humanos, temos a necessidade de sermos amados. Quer amor melhor do que esse, incondicional, 24 horas? — questiona Joelma, em videochamada pela qual é possível avistar seus dois felinos de estimação. — É avassalador: da noite para o dia, tenho que aprender a não ter mais essa presença constante. A gente nunca vai estar preparado para perdê-los — sintetiza.
Anos atrás, a também psicóloga Fabiana Nascimento enfrentou a morte da lhasa apso Mel. À época, Fabiana lidava com uma gestação de risco, com recomendação de repouso absoluto, e não pôde se despedir da cadela. O processo que decorreu dessa perda foi tão intenso que a levou a se especializar no luto provocado pela morte de animais de estimação.
— É um luto não reconhecido. O mundo não reconhece o amor multiespécies e não reconhece também esse luto. O luto, em geral, já é muito solitário por si só, e o luto pet, ainda mais. A gente tende a silenciar, a não falar mais, a contar uma outra história para tentar validação. Se você disser que perdeu um amigo, terá apoio. Se contar que perdeu um animal, vão te mandar adotar outro — comenta Fabiana, que atende pacientes de todo o Brasil e também do Exterior.
"A tragédia da enchente desautorizou minha dor"
Em 3 de maio, exatos 30 dias após a morte de Bia, o Guaíba avançava feroz sobre Porto Alegre quando participei da reunião online de um grupo de apoio para tutores enlutados. Seis mulheres, mediadas pela psicóloga Fabiana, compartilhavam suas sensações. Duas delas sofriam por animais ainda vivos, mas gravemente doentes.
— Tem dias em que é insuportável ficar em casa — desabafou a primeira a falar.
— Quanto tempo demora para passar? Ver a foto dela me dói — disse outra.
— A dor do luto não passa. A gente tem que aprender a conviver com ela. Até hoje, tem dias em que eu não como — confidenciou a mãe de um cachorro falecido havia cinco anos.
— Eu oro para São Francisco todos os dias, peço a Deus — contou a tutora de um gato de 16 anos. — Quero fazer com que ele volte ao que era antes, seja com medicamento, seja com um milagre.
No encerramento do encontro, Fabiana pediu:
— Fiquem em paz com as decisões de vocês. Alimentem esse amor todo. Não é só o luto, não é só tristeza. Cuidem do legado deles.
Desconectei e comecei a perceber o que estava acontecendo na cidade. Meu luto foi inundado pela enchente histórica. O tamanho da tragédia desautorizou a minha dor pela gata. Como poderia falar sobre ela ou receber qualquer tipo de acolhimento em meio à maior tragédia socioclimática da história do Rio Grande do Sul? A calamidade vitimava também os animais, resgatados aos milhares das águas geladas, e os gatilhos emocionais estavam por toda parte.
"Não vai pegar outro gato?"
Dores não se comparam, alerta Joelma. Temos o hábito de classificar o sofrimento, presumindo, por exemplo, que luto de mãe é pior do que luto de viúvo. O luto é como a impressão digital: cada processo é único, pessoal, não se repete. É necessário entender quem era esse ser na vida da pessoa e autorizá-la a sofrer.
— Tenho paciente que fala: "Eu não senti isso quando perdi a minha mãe". Mas quem era a mãe na vida dele? Era presente? O pet era. Pode ser tão avassalador ou até mais mais avassalador do que perder um ser humano, dependendo de quem era esse humano na vida da pessoa e do momento de vida em que ela está. E não é loucura. O que mais me perguntam na primeira sessão é: "Estou enlouquecendo? Nunca senti isso". Para eu entender o tamanho da dor, tenho que entender o tamanho do amor. Tem pets que representam muitos papéis na vida do ser humano, então é natural essa dor psíquica. Esperamos da sociedade um respeito por essa dor. Cada um é que sabe da sua dor — discorre a psicóloga.
Desde o dia da morte de Bia, a imensa maioria das pessoas que falou comigo sobre o assunto se arriscou com a pergunta que mais me doía:
— Não vai adotar outro gato?
Numa decisão que hoje questiono se foi acertada ou não, tirei todos os pertences da gata do meu apartamento no dia seguinte ao da morte. Camas, caixas de papelão, brinquedos, cobertas, arranhadores e potes encheram o carrinho de carregar compras do condomínio. Até o porteiro perguntou, diante da cena:
— Não vai pegar outro gato?
Há pouquíssima tolerância para o sofrimento alheio, explica Joelma. As pessoas não querem estar perto de quem sofre porque não sabem o que dizer.
— E não precisariam falar nada, só escutar. Poderiam dizer que não imaginam o que é perder um pet porque nunca tiveram um — observa Joelma. — A gente só conhece essa dor quando passa por ela. Não temos educação para a morte, não falamos de morte, fugimos da morte. Temos a tendência de querer substituir o sofrimento, de querer que o outro pare de sofrer. Queremos arrumar soluções rápidas, e é solução rápida dizer para arrumar outro animal. Fazemos isso com o sofrimento em geral, não só com o luto pet. Tem quem fale para a mãe que perdeu um filho que logo ela vai engravidar de novo.
"Parece que escuto o miado dela ao chegar em casa"
Este tem sido um inverno solitário sem minha companheira de colo. Bia dormia comigo, debaixo das cobertas. Adorava o aquecedor e minhas meias de lã. Despertava cedo e começava a caminhar em cima de mim, miando bem perto do meu rosto, no que eu chamava de "passeata da fome". Os gatos são engraçados em seu desespero por comida.
Tem vezes em que tenho a impressão de vê-la de relance dentro de casa. Parece que escuto o miado quando enfio a chave na porta ao chegar. Cheiro profundamente um cobertor que ela usava para ver se alguma memória ou vestígio é capaz de nos reconectar.
O luto é um caminho a ser percorrido. Um processo. A dor aguda do começo vai sendo integrada em nossa vida. Não é uma estrada linear: há dias ruins e dias melhores. Recomenda-se atenção com o autocuidado. O ideal é procurar recursos para aliviar a dor. Interação social, espiritualidade, literatura, escrita, as estratégias são diferentes para cada um.
— Não vai passar, mas vai minimizar — diz Joelma.
No final de nossa conversa por videochamada, ela me falou que ninguém passa por um processo de luto tão significativo sem se transformar. Garantiu que o vínculo entre Bia e eu será constante, como acontece com todo mundo que perde alguém de estreita convivência:
— Você vai sempre continuar com a sua gata na sua vida. Ela vai viver com você até a sua morte. Na roupa, no olfato, na lembrança. É um amor que continua de outra forma, mas continua.
Uma mudança grande se aproxima. De muitas maneiras, Bia vai comigo.