Mais comum das demências, o Alzheimer, que ataca os neurônios e vai comprometendo o cérebro progressivamente, impõe uma série de desafios e adaptações aos familiares que acompanham o paciente. Uma dessas questões, para a qual não há consenso entre especialistas em relação a como proceder, é bem inicial: o doente deve saber ou não do seu próprio diagnóstico?
O esquecimento é uma característica marcante do Alzheimer, fazendo com o que o paciente não consiga reter memórias. A depender do estágio da doença, a revelação dessa informação teria um efeito de minutos, impondo a necessidade de sucessivas repetições. Vale a pena expor o indivíduo a esse sofrimento?
Wyllians Borelli é neurologista e coordenador do Centro da Memória do Hospital Moinhos de Vento, em Porto Alegre. O médico destaca que o paciente está no centro das atenções e dos interesses:
— O mais importante é levar em consideração que o paciente tem autonomia, e a gente está atendendo o paciente. Como médico, coloco isso acima de tudo: o que o paciente deseja. Se começarmos a investigar perda de memória e isso se encaminhar para Alzheimer, o paciente tem que decidir se quer saber — afirma Borelli, considerando os diferentes estágios da doença e a variação na capacidade de compreensão. — Se for moderado ou avançado (e, consequentemente, com perda de memória mais séria), começo a me questionar que benefício o paciente tem. Isso gera muito sofrimento — complementa.
Em casos de queixas relacionadas à memória, o paciente pode chegar ao consultório sozinho, incomodado com os esquecimentos, ou acompanhado de um familiar. Borelli diferencia as situações mais comuns: quando o paciente comparece sozinho, pedindo ajuda, e geralmente é um quadro mais leve ou nem é demência, e quando o familiar o acompanha para relatar os problemas — nesse último caso, em geral, o paciente já não tem percepção da própria doença, há falta de capacidade de entender o que tem.
— O ideal é conversar com o familiar em separado. Enquanto o paciente está fazendo os testes de memória, converso com o familiar e vejo como é a percepção dele sobre o paciente que está sendo examinado. Levamos isso em consideração. Tem paciente que quer muito saber o que está acontecendo. Tem outros que só querem ir logo para casa — diferencia Borelli.
Alessandro Sousa, neurologista do Hospital São Luiz Campinas, no interior de São Paulo (SP), explica que, em um estágio de declínio cognitivo leve, ainda que tenha impacto na cognição, o paciente consegue manter as atividades da vida diária. Isso permite que ele se engaje mais no tratamento, que prevê atividade física, dieta balanceada, interação familiar e social e estímulo cognitivo.
— O paciente também pode tomar decisões com a família, como a de fazer a transição para um cuidador, por exemplo — acrescenta Sousa.
Nas fases moderada e grave da evolução do Alzheimer, o indivíduo não tem mais percepção da doença.
— Ele começa a ser bastante repetitivo, esquece as coisas, esquece o que fez, como uma refeição ou tomar banho. Nesse estágio, sempre parto da linha de que é interessante, sim, o paciente saber do diagnóstico, mas aqui ele não reconhece mais que está doente. Por mais que se fale várias vezes, ele não retém essa memória. Na consulta, a gente sempre conta. Mas em casa, se ele esquecer, a família teria que ficar todo dia lembrando. Aí já não faz tanto sentido — pondera Sousa.
Cada caso é único, ressalta Borelli. O neurologista do Hospital Moinhos de Vento resume:
— Tem que colocar na balança: qual é o benefício e qual é o risco para o paciente. Ele vai ter mais benefício ou mais risco sabendo do diagnóstico? Se ele está num quadro inicial, se podemos prevenir declínio (cognitivo), começar um remédio novo, aí é benéfico para ele saber do diagnóstico. Mas se ele está em estágio moderado, já em sofrimento, e muitos têm depressão junto, falar do diagnóstico vai gerar sofrimento. Fala, machuca, logo esquece. Fala, machuca, logo esquece.
Há cerca de dois anos, Neusa Apparecida Correa Elias, hoje com 89 anos, começou a apresentar esquecimentos. Não se recordava de conversas ou episódios passados havia poucos minutos. De lá para cá, ela consultou com neurologistas que creditaram o sintoma ao avançar normal da velhice. A filha, Maria Antonieta Elias, 64 anos, não se satisfez com nenhum dos profissionais e, em dezembro passado, chegou a mais um especialista. Este afirmou que era doença de Alzheimer.
Antes de se certificar do diagnóstico, a família, atordoada com a mudança de comportamento de Neusa, manteve alguns diálogos combativos com a idosa.
— Mãe, você está ruinzinha, está com Alzheimer — disse Maria Antonieta certa vez.
— Vocês querem que eu enlouqueça — reagia Neusa, enfurecida.
Agora com a paciente mais calma, após a o início da medicação prescrita pelo último médico, a decisão é de não mencionar a doença na presença dela, mesmo que ela logo viesse a esquecer essa informação.
— Tenho medo de magoá-la falando disso. Não quero criar uma coisa ruim. É muito triste. Ela foi uma ótima mãe, é uma pessoa maravilhosa — comenta Maria Antonieta.
Sousa observa que a doença de Alzheimer, assim como demências em geral, é um desafio imenso para a família, muito maior do que para o próprio paciente.
— Chega o momento em que o paciente perde a percepção. A família tem que lidar com aquele luto de ver a pessoa se desconstruindo e, ao mesmo tempo, ter que cuidar, incentivar, relevar. Os pacientes têm uma alteração comportamental muito exuberante. O fim da demência é sempre a perda da iniciativa — diz Sousa.