Nunca a palavra "lealdade" foi tão bem pronunciada em todas as suas letras quando na entrevista coletiva do técnico Tite na véspera do jogo do Brasil contra o Equador. Ele se referia diretamente à decisão de jogadores e comissão técnica da Seleção Brasileira de se pronunciarem sobre a Copa América apenas após os dois jogos das Eliminatórias, contra equatorianos e paraguaios, respectivamente.
Indiretamente, porém, o treinador se referia a algo que o está incomodando muito no cargo e que pode significar sua desistência de um projeto muito importante para sua carreira e de seu grupo de trabalho. Ele pode pedir demissão após o jogo contra o Paraguai.
Vamos aos fatos:
1) Tite sabe que não era uma convicção de primeira hora do presidente da CBF, Rogério Caboclo, quando se encerrou o ciclo da Copa do Mundo da Rússia. A permanência se deu em função de uma costura feita por seu amigo e ex-coordenador Edu Gaspar, que deixou a CBF, mas aconselhou a entidade a manter o projeto com o técnico.
2) A Copa América de 2019, embora sem uma tensão aparente, era decisiva para a sequência do trabalho. A comissão técnica nitidamente perdeu autonomia em relação ao que tinha anteriormente. A perda da Copa na Rússia tirou poder de barganha do treinador e seus assistentes, mas o título conquistado estabilizou a situação.
3) O período da pandemia serviu para manter inerte a estrutura. O início das Eliminatórias mostrou uma retomada da qualidade do futebol com resultados excelentes, mas o período recente, sem partidas, não impediu o presidente Rogério Caboclo de cogitar e convidar profissionais, como o espanhol Xavi ou o brasileiro Muricy Ramalho, para se juntarem à comissão técnica da Seleção. Nenhum dos dois aceitou. Isto simplesmente aconteceu à revelia de Tite, que ficou sabendo que Xavi, dito pelo próprio, recebera a sondagem também para ser treinador do Brasil após a Copa do Catar. Para quem preza tanto pela lealdade, aí está um abalo.
4) A decisão compartilhada entre presidentes da República e da CBF, trazendo para o Brasil a Copa América, definida na última segunda-feira, foi uma surpresa geral na Granja Comary. Sem querer ser alguém decisivo, Tite esperava ter pelo menos uma sinalização do que fora arquitetado e que envolvia sua equipe de profissionais e os atletas, os verdadeiros personagens do evento. Pode se dizer que aí está a chamada gota d'água na desestabilização da lealdade.
5) Extremamente zeloso pelo seu principal projeto profissional, o de ser campeão mundial com a Seleção Brasileira, cheio de planos, esquemas e perspectivas, Tite balançou fortemente pela primeira vez quanto a permanecer no cargo. A família já garantiu apoio a qualquer decisão que ele venha a tomar, inclusive o alertando para que a lealdade siga sendo um valor inarredável em qualquer trabalho.
6) Em consonância com os atletas e seus parceiros de comissão técnica, há discordância do fato do Brasil ser sede da Copa América numa situação delicada do país, um dos recordistas em mortes pela covid-19. Há muito menos medo do coronavírus do que respeito a uma rejeição maioritária da população brasileira contra a competição.
Estes são fatores que evitam qualquer tipo de surpresa se, ao final do jogo em Assunção na próxima terça-feira, o treinador anunciar que abre mão de seu principal projeto profissional e até pessoal em nome de conceitos e valores de vida. Nestes, a palavra principal é aquela dita com todas as sílabas na entrevista coletiva: lealdade.