Descubra o problema da frase a seguir: “O jornalista estava no lugar errado, na hora errada, com a pessoa errada”. Ela foi pronunciada no começo da semana pelo superintendente da Polícia Federal do Amazonas, Eduardo Fontes, durante uma entrevista à Rádio Gaúcha. O delegado falava sobre o assassinato de Dom Phillips, que se embrenhou na floresta brasileira ao lado do indigenista Bruno Pereira, também morto na emboscada.
Talvez Fontes não tivesse a intenção de dizer o que, de fato, disse. Acredito, de verdade, que a declaração buscava afirmar que Dom não era o alvo dos bandidos. Mas mesmo se fosse, a frase tem uma falha estrutural grave, que inspira uma reflexão – não porque uma das vítimas era um colega jornalista. Isso é irrelevante no caso. De fato, diferentemente do que disse o delegado, quem estava na hora errada, no lugar errado e com as pessoas erradas eram os assassinos, não as vítimas. Não há erro em fazer o que Dom e Bruno fizeram.
De uns tempos para cá, vem se naturalizando um discurso absolutamente torto. O de que as vítimas são, muitas vezes, culpadas por serem vítimas. Você já ouviu essas frases: “Ah, mas ela estava usando uma saia curta demais”. “Foi assaltado porque se descuidou”. “Roubaram a casa porque esqueceu a porta aberta”. “Caiu no golpe porque a senha da internet era fácil demais”. Uma mulher pode usar a saia que quiser, sem ser molestada. Você pode contar dinheiro na rua e isso não dá a ninguém o direito de arrancá-lo da sua mão. Todos nós deveríamos poder dormir tranquilos com as portas e janelas das nossas casas escancaradas, só temendo o incômodo eventual dos mosquitos. A internet não deveria precisar de senha para que fosse um ambiente seguro.
Uma vez, faz tempo, um delegado da Polícia Civil me chamou de ingênuo quando expus essa tese a ele. Na época, fiquei chateado. Hoje, encaro como um elogio. Sei que existe o ideal e o possível. Mas o segundo não impede a busca do primeiro. A tese do “lugar errado na hora errada” até pode ser aplicada, por exemplo, no caso de um meteoro cair na cabeça de alguém. Algo realmente fortuito, sobre o qual nós, seremos humanos, não temos qualquer controle. Mas no caso de Dom e de Bruno, eles estavam exatamente onde deveriam estar, na hora em que deveriam estar. Ir e vir é um direito, não só deles, mas de qualquer cidadão brasileiro ou estrangeiro que esteja legalmente no país.
Usando os termos do delegado, cabe às instituições e aos agentes do Estado brasileiro – de segurança, de educação, de Justiça e de saúde – estar na hora certa e nos lugares certos. Quando estão nos lugares errados, na hora errada e com as pessoas erradas, acontece o que aconteceu.