O texto abaixo foi publicado em Zero Hora em 28 de janeiro de 2013, um dia depois do incêndio que matou 242 pessoas na Boate Kiss. Ainda ouço todas essas vozes, quase nove anos depois, sem mudar sequer uma vírgula de lugar.
Fragmentos do que sobrou
A dor desenhou durante todo o dia de ontem um mosaico de sons e de silêncios no Centro Desportivo Municipal de Santa Maria. Uma mãe, chorando:
– Ela estava com camiseta da Kiss. Aí foi fácil reconhecer.
A tia, ao ouvir a frase acima:
– Não é possível, não é possível, não é possível, não é possível...
Uma amiga, perguntando a uma mãe:
– Ela tinha tatuagem?
A mãe, chorando:
– Eu já reconheci. Ela está lá.
Debruçado sobre um caixão, o pai de um dos mortos tenta abrir a tampa que cobre o visor. É interrompido por um abraço.
Sentada numa cadeira de plástico, uma mulher de camisa laranja enxuga um olho de cada vez. Direito, esquerdo, direito, esquerdo. Mecanicamente, repete o gesto dezenas de vezes.
Um homem tenta entrar no ginásio de onde os corpos eram carregados para os carros funerários. Uma policial não permite e ouve:
– Vocês são insensíveis! Queria ver se fosse um parente de vocês.
A policial fica em silêncio.
Pelo sistema de som do ginásio:
– Atenção! Atenção! Estamos chamando um nome que começa por R, mas isso não quer dizer que todas as outras letras já tenham sido chamadas.
Um garoto magrinho de camiseta, que carrega uma caixa de papelão entre o mar de pessoas atônitas:
– Quer uma água?
O funcionário de uma funerária:
– Não temos como levar um corpo para Panambi, mas, se a senhora me apresentar a família, eu encaminho eles.
De um homem com calça jeans e camiseta:
– A mãe veio e passou mal. Pediu para eu fazer o reconhecimento.
De uma policial a um familiar:
– Se tiver uma foto junto, sempre ajuda.
Da mulher gritando na porta do ginásio onde os corpos eram reconhecidos:
– Francisco Vieira, tem alguém aqui? Silêncio.
Na mesma porta, uma senhora de óculos:
– Aqui é pra reconhecimento?
Do radialista de uma cidade do Interior:
– Tulio, temos aqui nosso vice- prefeito. Posso fazer uma foto de vocês dois juntos?
Uma menina aos prantos, falando com dois amigos:
– Eu estava lá dentro da Kiss e consegui sair. Liguei pra ela e só ouvi ela dizer “me ajuda, me ajuda”. Aí acabou a ligação.
Uma mulher de camisa florida:
– Isso parece uma guerra. Parece uma guerra.
A madrinha de um dos mortos:
– Ele foi à festa de aniversário da namorada e não voltou.
Sobre o caixão, a namorada chora.
A freira segura um rosário ao lado do caixão:
– Ave Maria, cheia de graça...
Uma menina de blusa de alcinha, na ponta dos pés, ao telefone, procurando alguém no meio do multidão:
– Nós já estamos aqui dentro.
A mãe de uma menina morta, falando com a outra filha ao celular:
– A psicóloga já está aqui com a mãe, não te preocupa comigo.
Um rapaz de camisa branca diz a uma menina que chora:
– Minha mulher trabalhava com ela e já reconheceu.
Um homem abre caminho com um caixão embrulhado em papel pardo nos ombros:
– Com licença, com licença.
Um soldado do BOE empurra o biombo que impede a visão dos corpos e sai do ginásio.
Ele caminha para longe e diz, em voz baixa:
– Eu não aguento mais.