Lá atrás, quando a pandemia começou, um dos meus maiores temores era o de uma eventual explosão da violência em Porto Alegre. Conversei com muita gente que pensava igual. Em março, projetei os efeitos do desemprego e da fome. A criminalidade não é culpa dos pobres, vale sempre lembrar. Esse é um fenômeno bem mais complexo. Mas quando falta comida em casa, o ser humano volta, muitas vezes, a obedecer seus instintos mais básicos. O de sobrevivência é um deles. Então, fiz os cálculos e antevi um provável cenário de arrombamentos e saques. Errei.
Vários aspectos têm contribuído para o meu equívoco. Um deles, sem dúvida, é o excelente trabalho que vem sendo realizado pela Polícia Civil e pela Brigada Militar. Da inteligência às ações na rua, a integração e a presença garantem a queda em vários dos índices de violência no Rio Grande do Sul.
Mas há um outro fator que se destaca. Nunca antes as periferias receberam tanta atenção, fruto da solidariedade de pessoas e empresas. Doações de alimentos, máscaras, roupas. Não apenas itens materiais, mas a presença do Estado e da sociedade organizada em áreas até então invisíveis das grandes cidades.
Não diria aqui que os problemas acabaram e que, subitamente, a desigualdade e a violência vão terminar no país. O número de feminicídios e de homicídios aumentaram. O assassinato de mulheres por questões relacionadas ao ódio de gênero é uma praga que já vinha crescendo antes da pandemia. E os homicídios, de acordo com autoridades da área da segurança, pode também ser explicado pelas rixas e acertos de contas gerados pela liberação de presos que voltaram aos seus territórios.
Mas agora, pela primeira vez e com intensidade inédita, governos e empresas olham para as cidades como um todo. A falta de oportunidades que afasta milhões de pessoas do mercado de consumo não faz parte do capitalismo. Ao contrário. Na lógica capitalista, quanto mais gente com dinheiro, mais riqueza, mais empregos, mais lucros, mais impostos e mais bem estar. O Brasil é, sob esse prisma, um vexame capitalista.
O vírus transita vorazmente da favela ao bairro nobre. E vice-versa. Diferentemente da desigualdade, o novo corona é contagioso. Nos obriga a buscar soluções coletivas e a aceitar que a bolha é ridiculamente frágil. Suas paredes não resistem sequer a um micro-organismo invisível.