Lançada neste mês pela plataforma Max, a série documental Quiet on Set: O Lado Sombrio da TV Infantil (Quiet on Set: The Dark Side of Kids TV, 2024) reconstitui o ambiente tóxico do Nickelodeon, um dos mais populares canais para crianças e adolescentes. Os cinco episódios dirigidos por Mary Robertson e Emma Schwartz relatam casos de pedofilia, abuso e assédio sexual, racismo e bullying sofridos pelos atores de programas como All That, Zoey 101, Kenan & Kel, The Amanda Show, Sam & Cat e Drake & Josh. Entre os artistas ou ex-artistas que dão depoimentos, está Drake Bell. O documentário também recupera as passagens de Amanda Bynes e Ariana Grande pela emissora.
No centro da polêmica, está Dan Schneider, 58 anos, que entre 1994 e 2019 veio a se tornar o principal produtor do Nickelodeon, até ser demitido, na esteira do movimento #MeToo, por causa de denúncias de assédio e má conduta. No documentário, a roteirista Jenny Kilgen, que trabalhou com Schneider, conta que, certa vez, solicitou a uma colega sua, Christy Stratton, que apresentasse um script com o corpo deitado sobre a mesa, simulando sexo anal. Pedidos de massagem eram frequentes. Stratton lembra que ela e Kilgen tinham o salário dividido, enquanto os homens recebiam pagamento integral. O produtor também era dado a pegadinhas, como sustos, que deixavam as vítimas visivelmente incomodadas.
Em seus programas, Schneider dava vazão a um tipo de humor humilhante (vide o caso do ator mirim que teve o corpo coberto por pasta de amendoim e depois foi lambido por cachorros) e sexualizante. Quiet on Set resgata, por exemplo, o episódio de Zoey 101 em que a protagonista vivida por Jamie Lynn Spears tem o rosto atingido pelo esguicho de um líquido viscoso. É uma nítida alusão, pelo menos para os adultos, às cenas de ejaculação dos filmes pornô. Em outros momentos recuperados, Ariana Grande aparece mordendo os dedos de seus pés, espremendo uma batata para obter "suco" e molhando o corpo com uma garrafa d'água.
Bryan Christopher Hearne, que atuou na sétima e na oitava temporada de All That, diz que era frequentemente incluído em esquetes racistas. Sua mãe, Tracey Brown, lembra no documentário:
— Eles montaram uma cena como se ele estivesse vendendo drogas. E eu pensei: "Oh, o garoto negro vai ser o traficante de crack?".
Praticamente ninguém tinha coragem de contestar Schneider ou reclamar dessas mensagens subliminares, com medo de ser escanteado ou mesmo perder o emprego — em Hollywood, as portas se fecham em uma velocidade maior do que se abrem. Alguns pais tentavam fazer um alerta, cobrar alguma mudança, mas acabavam silenciados ou se viam rompidos com os próprios filhos.
Schneider, contudo, não teve ligação direta com os casos mais graves relatados em Quiet on Set: a ação de pedófilos. No plural, o que é mais aterrador.
MJ, mãe de uma atriz mirim chamada Brandi, falou sobre a perniciosa aproximação do produtor assistente Jason Michael Handy — ele chegou a enviar para a menina uma foto em que aparecia se masturbando. Em abril de 2003, a polícia encontrou na casa de Handy milhares de imagens de garotinhas em poses eróticas ou mesmo em atividades sexuais.
No terceiro episódio, Drake Bell revela que ele foi o ator adolescente vítima de abusos sexuais cometidos por Brian Peck, que era treinador de diálogos e também ator. O depoimento de Drake é um dos pontos altos, ainda que doloridos, da série documental. Ele fala sobre como ficou traumatizado e sobre como isso se refletiu em um comportamento autodestrutivo; lembra que Peck manipulou sua família para perpetrar seus crimes; conta sobre a troca de correspondência do agressor com o assassino serial John Wayne Gacy (1942-1994), que estuprou e matou pelo menos 33 rapazes com idades de 14 a 21 anos; e afirma ter sido chocante perceber a quantidade de apoio a Peck à época de seu julgamento, em 2004:
— No dia da sentença de Brian, todo o seu lado da sala do tribunal estava lotado. Havia alguns rostos reconhecíveis naquele lado da sala. Brian foi condenado, mas recebeu todo esse apoio de muitas pessoas da indústria.
Após a estreia de Quiet on Set nos Estados Unidos, Dan Schneider gravou um vídeo pedindo desculpas por suas atitudes e suas piadas inadequadas. Mas o ex-produtor da Nickelodeon decidiu processar os realizadores do documentário por difamação. "Em sua tentativa bem-sucedida de enganar os telespectadores e aumentar a audiência, eles foram além de relatar a verdade e insinuaram falsamente que eu estava envolvido ou facilitei crimes horríveis pelos quais verdadeiros predadores de crianças foram processados e condenados", diz Schneider na ação judicial. "Não tenho nenhuma objeção a que alguém destaque minhas falhas como chefe, mas é errado induzir milhões de pessoas à falsa conclusão de que eu estava de alguma forma envolvido em atos hediondos como os cometidos por abusadores de crianças."
A declaração de Schneider toca em um ponto sensível. Embora Quiet on Set tenha o mérito de denunciar o ambiente tóxico na Nickelodeon e de alertar famílias sobre riscos do trabalho infantil na indústria do entretenimento (que vão da falta de suporte emocional à exposição a pedófilos, passando pelo ônus da fama), a série escorrega seguidamente para o sensacionalismo. Não à toa, até alguns participantes do documentário dizem que se sentiram enganados e prejudicados.
Conforme a ex-atriz Alexa Nikolas e a atriz Raquel Lee Bolleau, houve informações incorretas e omissões de detalhes importantes. Para ambas, a abordagem de algumas situações permite entender que os produtores quiseram lucrar com o sofrimento experimentado por elas durante suas infâncias — entre os dias 18 e 25 de março, Quiet on Set foi a série campeã de audiência no streaming dos EUA segundo o agregador JustWatch.
Em entrevista ao site IndieWire, Bolleau disse:
— Vi que estava cercada por pessoas que tinham um objetivo, que era seu próprio sucesso. É uma palavra horrível para usar nesse contexto: sucesso.
O ex-apresentador Marc Summers apontou outra questão delicada, ligada à reexibição das cenas com piadas que sexualizavam crianças e adolescentes:
— Eles estavam mais interessados em reviver aquelas imagens horríveis do que ouvir as histórias dos sobreviventes.