A melhor série policial das histórias em quadrinhos vai virar uma série do Amazon Studios. A adaptação de Criminal, HQ escrita pelo estadunidense Ed Brubaker e desenhada pelo britânico Sean Phillips, já está em desenvolvimento, segundo informou a jornalista Nellie Andreeva no site Deadline, no início de fevereiro.
O próprio Brubaker deve ser o showrunner — o termo usado em inglês para nomear quem está no comando do projeto — e um dos produtores executivos, mas não se sabe nada sobre elenco nem direção. Muito menos uma data de estreia.
Se você quiser se antecipar e conhecer a trama (ou melhor, as tramas), a editora Mino está publicando no Brasil todos os quadrinhos do universo Criminal, sempre com tradução de Dandara Palankoff.
— Criminal conta a saga entrelaçada de várias gerações de famílias ligadas pelos crimes e assassinatos do passado — descreveu certa vez Brubaker. — E um dos grandes eventos no passado de muitos desses personagens, algo que é referenciado desde a primeira história de Criminal, foi a morte de Teeg Lawless. Antes mesmo de conhecermos Teeg, sabíamos que ele havia morrido quando seus filhos eram adolescentes.
O sobrenome reforça o recado dado no título: os tipos retratados em Criminal trafegam por um território sem lei (lawless, em inglês). Andam por caminhos perigosos — a referência à primeira parceria entre o cineasta Martin Scorsese e o ator Robert De Niro (no original, Mean Streets, em 1973) não é aleatória.
Filho do romancista e contista Stephen King, o escritor Joe Hill já comparou Brubaker, 56 anos, e Phillips, 58, à dupla formada por Scorsese, 80, e De Niro, 79. Como o ator em relação ao diretor, o artista inglês é quem dá corpo às ideias do roteirista estadunidense. A exemplo do cineasta e do astro de Taxi Driver (1976), Os Bons Companheiros (1990), Cassino (1995) e O Irlandês (2019), os quadrinistas especializaram-se em tramas não raro violentas sobre danação, com personagens à margem da lei ou com moral duvidosa.
Brubaker e Phillips também são parceiros de longa data: se Scorsese já dirigiu De Niro em 10 filmes desde Caminhos Perigosos, o escritor e o desenhista já lançaram duas dezenas de obras desde Batman: Gotham Noir (2001), incluindo a premiada Fade Out (2014-2016), que se passa no submundo de Hollywood.
Brubaker e Phillips sedimentaram as bases de seu trabalho em Criminal, que desde 2006 já teve um total de 10 histórias publicadas. Três ganharam o Eisner, a principal premiação do mercado de quadrinhos nos EUA. Covarde, a obra de estreia, venceu na categoria de melhor série nova, em 2007. O Último dos Inocentes faturou, em 2012, o troféu de melhor série limitada. E Meus Heróis Eram Todos Viciados foi agraciada, em 2019, como melhor álbum gráfico.
Até o momento, a Mino já lançou:
- Covarde (144 páginas, R$ 89,90), em que o ladrão Leo Coward busca planejar o roubo perfeito;
- Lawless (144 páginas, R$ 89,90), em que o soldado Tracy Lawless, um dos filhos de Teeg Lawless, retorna das guerras no Iraque e no Afeganistão para tentar descobrir quem largou em um beco o corpo de seu irmão, Rick;
- Os Mortos e os Moribundos (144 páginas, R$ 89,90), que se passa em 1972 e interliga as trajetórias de um boxeador, um gângster, uma garçonete e Teeg Lawless;
- Noite de Azar (128 páginas, R$ 98,90), que apresenta Jacob Kurtz, um viúvo que por muito tempo foi o principal suspeito da morte de sua esposa e hoje produz uma tira de quadrinhos policial no jornal da sua cidade, onde vai se envolver com a femme fatale Iris e trilhar uma jornada turbulenta;
- Os Pecadores (144 páginas, R$ 98,90), em que Tracy Lawless acaba encarregado de solucionar uma série de assassinatos de mafiosos;
- Meus Heróis Eram Todos Viciados (72 páginas, R$ 69,90), em que o típico protagonista masculino de Brubaker e Phillips dá lugar a uma moça: Ellie, filha de uma viciada em heroína, fã de cantoras, escritores, roqueiros, pintores etc. que tinham alguma forma de dependência química e agora internada em uma clínica de reabilitação, onde começa a se aproximar de um rapaz;
- e Um Fim de Semana Ruim (72 páginas, R$ 84,90), ambientada durante uma convenção de quadrinhos, onde Jacob Kurtz vai acompanhar o lendário autor Hal Crane e descobrir uma história secreta e sombria.
Agora em fevereiro, está saindo O Último do Inocentes (112 páginas, R$ 94,90), sobre Riley Richards, um garoto que tem o futuro garantido e namora a garota mais bonita da escola, mas está ligado ao mundo do crime. No final de março, será a vez de Hora Errada, Lugar Errado (112 páginas, R$ 94,90), que visita o passado de Teeg Lawless, quando estava atrás das grades, e a infância perigosa de Tracy Lawless. Mais adiante, sairá Verão Cruel (Cruel Summer), outra história estrelada pela família Lawless, agora em 1988.
Enquanto Sean Phillips equilibra realismo e estilização, apostando na expressividade dos personagens e contando com a inestimável companhia de coloristas como Elizabeth Breitweiser, Val Staples e Jacob Phillips (seu filho), Ed Brubaker atualiza, em narrativas ambientadas no século 21, nos anos 1970 ou na década de 1980, a literatura noir — Raymond Chandler, Dashiell Hammett, James M. Cain... — e o cinema desse subgênero policial. Com títulos indicativos, filmes como Alma Torturada (1942), À Sombra de uma Dúvida (1943) e Beijo da Morte (1947) traduziam angústias da população estadunidense, com o sentimento de segurança e estabilidade em xeque por conta da Segunda Guerra Mundial. Assim disse o pesquisador Bertrand de Souza Lira, autor de Cinema Noir: A Sombra como Experiência Estética e Narrativa (Editora UFPB, 2015): "Com seus valores abalados, a sociedade absorveu facilmente a concepção niilista do homem, com temas sombrios, como alienação, corrupção, desilusão e neurose, alimentando os argumentos noir". Em cenários pessimistas e fatalistas, quase sempre noturnos ou soturnos, a sobrevivência demandava personagens de ética e moral ambivalentes.
Criminal retoma quase todos os clichês do noir: os pequenos criminosos, os assassinos cruéis, as femmes fatales, os barões do submundo, os bartenders que sabem tudo, os capangas dotados de um código de ética e os homens tragados por seus próprios desejos. Ed Brubaker e Sean Phillips cozinham esses ingredientes com afeto e sofisticação, mas sem glorificar o crime. Seus personagens estão longe de serem heróis, embora despertem empatia. Só que nem os autores, nem eles próprios escondem seus podres ou douram sua índole. São íntegros em sua baixeza — ainda que aqui e ali elevem-se no meio de gente pior.
Brubaker e Phillips mergulham no lodo emocional de um punhado de homens (quase sempre brancos, vale ressaltar). A voz encontrada pelo roteirista é tão autêntica, que embarcamos juntos. Somos seduzidos como marinheiros por sereias: sabemos que, de um jeito ou de outro, vamos quebrar a cara, mas rumamos resolutos para os rochedos.
Os personagens de Criminal tentam fugir desse destino que conhecem tão bem. Por vezes, são patéticos na sua fé em um sonho. Em outras, a vingança é o único sentido de suas vidas. Todos buscam os braços de outros (quase sempre outras, vale reforçar) porque não suportam a solidão que tanto lhes convém. Todos carregam traumas familiares, daí que muitos procurem, a seu modo, recriar ou inventar laços. Não é por acaso que personagens centrais de uma história apareçam como coadjuvantes quase desimportantes em outras, e vice-versa: como uma família, estão todos unidos pelo sangue.