Um se passa na periferia de São Paulo, e o outro, na região metropolitana de Fortaleza. Mas Porto Alegre impregna dois recentes filmes brasileiros de terror.
Em Morto Não Fala, que segue em cartaz nos cinemas, a cidade é visível e audível. Embora o protagonista e os personagens coadjuvantes morem na paulistana – e suburbana – Vila Gustavo, por onde circulam rabecões com o logotipo do governo daquele Estado e notícias sobre briga entre torcedores do Corinthians e do Palmeiras, o espectador porto-alegrense poderá reconhecer alguns cenários, como o Cemitério da Santa Casa, no bairro Azenha, ruas do Morro da Cruz e o Parque Saint Hilaire, em Viamão. Afinal, trata-se de uma coprodução entre Globo e Casa de Cinema de Porto Alegre, com direção de Dennison Ramalho, paulista que viveu na capital gaúcha dos sete aos 25 anos. Foi aqui que ele deu seus primeiros passos cinematográficos, o curta-metragem Nocturnu (1998). Não por acaso, é tido e chamado de gaúcho no centro do país (ele próprio se considera um filho do Rio Grande do Sul). E, embora o elenco principal seja todo importado (Daniel de Oliveira, Fabíula Nascimento, Marco Ricca e Bianca Comparato), há um punhado de atores nossos em cena, como Roberto Oliveira, Nelson Diniz, Marcos Contreras e Gabriela Greco ("Ela faz a endemoniada na TV", explicou-me Jorge Furtado, um dos sócios da Casa de Cinema).
A ligação da outra obra de horror com Porto Alegre é bem menos direta. Para dar vida a O Clube dos Canibais (que, após duas semanas no CineBancários, nos próximos dias ganhará quatro sessões no Capitólio), o cearense Guto Parente inspirou-se no livro O Maior Crime da Terra, em que o historiador gaúcho Décio Freitas (1922-2004) debruça-se sobre uma das mais célebres lendas urbanas da cidade. Sim, estamos falando dos Crimes da Rua do Arvoredo, atual Fernando Machado, no Centro Histórico, onde, entre 1863 e 1864, o catarinense José Ramos e sua esposa, a húngara Catarina Palse, teriam transformado em linguiça a carne das pessoas que assassinaram. Os linguiceiros do século 21 são o empresário Otávio (Tavinho Teixeira) e sua esposa desocupada, Gilda (Ana Luiza Rios), que logo na abertura revelam seu modus operandi: ele finge que vai a trabalho para a cidade grande, ela seduz um empregado da casa; quando a transa atinge seu ápice, o marido aparece com um machado para golpear na cabeça o pobre coitado, que pinga sangue sobre o corpo de Gilda. Na sequência seguinte, ela faz juras de amor enquanto Otávio esquarteja o defunto.
Entre si, os dois filmes também têm pontos em comum, ainda que o primeiro invista no terror sobrenatural e o segundo, na pornochanchada gore. Ambos não fazem firulas para mostrar do que seus protagonistas são capazes – em Morto Não Fala, Dennison Ramalho evita explicações ou rituais sobre a mediunidade de Stênio, o plantonista de necrotério vivido com muita entrega e seriedade por Daniel de Oliveira. Assim que ele se vê a sós com o cadáver que acaba de costurar, desata a conversar com o morto (que se expressam sob dispensáveis efeitos sonoros).
Em ambos, somos levados a "torcer" por personagens que não são ilibados, mas sem serem retratados ou, no mínimo, permitirem sua identificação como heróis, a exemplo do que ocorre em Coringa. Há bússolas morais, há a básica lei de talião, de reciprocidade. Stênio quebra uma regra – usa uma informação do além, e o pior, para empreender uma vingança –, e ele sabe que vai pagar por isso. Otávio e Gilda incomodam tubarões maiores, mas não ganham contornos de peixinhos dourados quando passam a ser caçados.
Os dois filmes não se limitam ao chamado cinema de gênero. Conjugam os sustos e a sanguinolência a doses generosas de crítica social. Baseado em um conto do repórter policial Marco de Castro, Morto Não Fala traduz o cotidiano violento das periferias, que abundam no Instituto Médico Legal (IML) com jovens (negros, na maioria) vitimados pela guerra do tráfico ou pelas disputas de poder entre torcidas organizadas – espaços de identificação e possibilidade de ascensão para um contingente sem muitos referenciais nem muitas perspectivas. Contudo, à medida que a narrativa avança, torna-se mais particular, tanto no plano dramático (com Stênio cada vez mais enredado na arapuca que armou para si próprio) quanto na sua condução (com Dennison cada vez mais propenso a exibir virtudes técnicas suas e de sua equipe – aliás, fotografia, montagem e trilha sonora merecem mesmo aplausos).
Um pouco mais de volúpia visual faria bem a O Clube dos Canibais, que, mesmo sendo curto (menos de uma hora e meia), dá a impressão de se esticar ou de se repetir em algumas passagens, ainda que em outras consiga criar cenas de impacto. Por outro lado, o filme cearense assume de forma mais explícita e permanente seu ataque ao que o cineasta Guto Parente, em entrevistas, cita como uma mazela brasileira: o descaso dos muito ricos pelos muito pobres, que só servem para serem comidos, literalmente e também no sentido sexual. É uma elite predadora e hipócrita, que diz mentiras até elas se tornarem verdades. Essa é a tática adotada pelo deputado Borges (Pedro Domingues), o líder do Clube dos Canibais, quando Gilda descobre um segredo seu. Um segredo que contraria parte do discurso proferido horas antes pelo político, palavras embebidas em um vinho da moda, o fundamentalista, palavras que não buscam o diálogo, mas a cisão, palavras que querem calar as transformações sociais em nome de interesses privados: "Enquanto nos mantivermos leais uns aos outros e aos nossos ideais, seremos eternamente merecedores da posição privilegiada que ocupamos nesse mundo. Posição essa que nos demanda cada vez mais atenção e responsabilidade, pois nossos inimigos, aqueles que lutam pela degradação dos valores da família, da fé e do trabalho, aqueles que querem transformar o nosso país em uma terra de miseráveis, de delinquentes, de pederastas e de toda uma escória social que deveria se encontrar esmagada sob nossos pés, aqueles são capazes de todo tipo de vileza para nos derrubar. Mas não vamos cair. Nunca. Jamais. Porque somos muitos e somos fortes. Viva o Brasil e viva o povo brasileiro!".