Rodado em Porto Alegre e estrelado por Daniel Oliveira, Morto Não Fala entra em cartaz nesta quinta-feira (10). Com produção da Casa de Cinema, o filme de terror faz uma adaptação do conto homônimo do escritor e jornalista Marco de Castro. Trata-se do aguardado primeiro longa do cineasta Dennison Ramalho, 45 anos, nome de bastante prestígio pelo cinema de gênero no Brasil.
Natural de São Caetano do Sul (SP), mas tendo vivido em Porto Alegre dos sete aos 25 anos, Dennison ganhou notoriedade com seus curtas Nocturnu (1999), Amor só de Mãe (2002) e Ninjas (2010) — além de ter sido coroteirista e diretor-assistente de Encarnação do Demônio (2008), dirigido por José Mojica Marins, projeto que trouxe Zé do Caixão de volta ao cinema. De acordo com o cineasta, seu primeiro longa atrasou um pouco para sair por ser muito criterioso na escolha de seus trabalhos, além de ter passado muito tempo envolvido em outros projetos, o que inclui seu mestrado em direção e roteiro na Columbia University, em Nova Iorque.
— Demorei para achar um projeto que acreditasse que iria render um longa realmente original. Também fiz certas escolhas na carreira que consumiram alguns anos da minha vida e que considero que foram decisões muito acertadas, como realizar Encarnação do Demônio — justifica.
Dennison destaca que tem uma conexão muito forte com os temas escolhidos por Marco de Castro, que trabalhou como repórter policial do repórter policial no Agora São Paulo, tanto que já havia adaptado no curta Ninjas outro conto do escritor.
— Ele escreve ficção de terror com comentário social muito explícito. Fala das questões do Brasil urbano. Inclusive ele me levou em coberturas de chacinas, calamidades que aconteceram na periferia, e nos aproximamos muito por essa nossa fascinação pelo universo marginal urbano do Brasil. O terror acontecendo nas periferias era uma missão que o Marco tinha colocado em sua literatura, que me identifiquei muito e coloquei essa missão no meu cinema — descreve o diretor.
Mesa do necrotério
Originalmente, Morto Não Fala foi escrita por Dennison e por Cláudia Jouvin (que também assina o longa) para ser uma série da Globo. Porém, o cineasta conta que a emissora achou melhor testar esse projeto antes como filme para depois retomá-lo como série.
A trama conta a história do taciturno Stênio (Daniel de Oliveira), um plantonista de necrotério que tem o dom de falar com os mortos, que ele trata com ironia e naturalidade. Há uma regra básica: não pode repassar as confidências que ouve dos cadáveres. É apenas um receptor passivo. Em meio a essas conversas com os mortos em seu trabalho desgastante na madrugada, Stênio tem uma relação conturbada com sua esposa, Odete (Fabíula Nascimento). Também não lhe resta muito dinheiro, pois vive devendo na padaria de Jaime (Marco Ricca), onde também trabalha Lara (Bianca Comparato), filha do dono do estabelecimento. Contudo, uma revelação de um dos mortos atinge sua vida pessoal, o que desencadeia uma maldição que passa a lhe perseguir.
Na interpretação intensa de Daniel de Oliveira, Stênio é um sujeito taciturno e amargurado, que parece carregar o peso de seu dom nas costas. Um personagem que carrega um olhar de frustração e abatimento.
— É um cara f***do. Quem não ficaria amargurado na situação dele? É uma pessoa mal amada, marginalizado, não reconhecido pela sociedade, cheio de problemas em casa. É natural que ele venha de saída com toda essa carga negativa para a história — reflete Dennison.
Embora seja um filme sanguinolento e graficamente forte em algumas cenas, com elementos de gore, Morto Não Fala vai ao encontro da tendência do cinema de gênero com comentário social — algo presente em trabalhos anteriores de Dennison (Ninjas e J de Jesus). O diretor diz que tem dedicado a ser uma voz original no cinema de gênero, mas há um referência clara: o cineasta americano George Romero.
— É um cinema de terror muito carregado de comentário social, de falar de seu lugar. Eu quero muito falar do Brasil. Nesse sentido, sou muito influenciado pelo Romero, de não contar só uma história para assustar as pessoas com os eventos sobrenaturais, mas principalmente deixar os eventos naturais, por mais antinaturais que sejam, falar da realidade — destaca.
MAIS PERGUNTAS PARA DENNISON
Entre os comentários sociais mais perceptíveis em Morto Não Fala está a questão do sexismo, além da violência urbana.
— Falo de valores apodrecidos nessa tal sociedade familiar brasileira. Todo o mal que se abate sobre a família do protagonista se desenvolve por uma questão estúpida e sexista de um "homem de bem da família brasileira". Também há a questão da violência urbana e os códigos de honra distorcidos utilizados pelo crime organizado. E ainda a questão do abuso de autoridade, que aparece de forma mais velada no filme: os cadáveres que vão para o necrotério são de jovens negros, mortos pela polícia. São indícios da derrocada da nossa sociedade que estão colocados na mesa do necrotério.
Globoplay e Netflix ficaram animadas em saber que há cinema de gênero no Brasil
DENNISON RAMALHO
Diretor de "Morto Não Fala"
Nos últimos anos, o cinema de gênero no Brasil tem tido uma boa safra de filmes que mesclam horror com comentário social. Produções como Animal Cordial, As Boas Maneiras, A Sombra do Pai, O Clube dos Canibais e, é claro, Morto Não Fala. Como você avalia esse cenário?
Só posso avaliar da forma mais positiva possível. Esse pequeno boom do gênero é muito gratificante. Se tem passado batido do público, não tem passado dos grandes players. Globoplay e Netflix ficaram animadas em saber que há cinema de gênero no Brasil, e estão alfinetando todos nós autores a trazermos projetos de série. Mais filmes e séries de gênero vão chegar em breve nas plataformas de streaming, tenho notícias disso. Acho que isso tudo é resultado desse interesse em fazer o gênero acontecer. Principalmente por uma geração que estuda muito o gênero. Acho que essa safra legal vai continuar e vão surgir produtos de bastante qualidade e originalidade.
O que te atrai no cinema de gênero?
Desde a minha infância, eu estudo e cultuo o cinema de gênero. Muita coisa importante na minha vida se formou até em nível pessoal por conta desse amor e curiosidade ao cinema de gênero. Amizades se formaram em função de trocas de referências, ainda mais na época que não havia toda a facilidade do streaming. Quem conseguia aquele filme raro, trocar livros, zines e revistas. Isso tudo inflamou minha curiosidade e a minha formação cultural. E no caminho que escolhi de ser um realizador foi natural gravitar para o gênero.
Morto Não Fala poderia se tornar uma série?
Isso é muito informal e circula pelos corredores da Rede Globo. Houve uma primeira encarnação de Morto Não Fala, que seria uma série antes de um longa. Fui contratado há cinco anos pela Globo para desenvolver uma série. Escrevi um roteiro da primeira encarnação de Morto Não Fala com a Cláudia Jouvin, que também assina o roteiro do longa. Ao olhos da Globo, pareceu uma proposta que precisava sofrer alguma espécie de teste anterior. O que seriam as demandas de efeitos especiais, se a indústria e a estrutura da TV Globo estaria capacitada a entregar isso com qualidade. Então a emissora deu um passo atrás. Acho melhor fazer um longa para ver como isso performa para daí retomar como série. A série teria que ser reescrita.
Daniel Oliveira é um ator consolidado no cinema brasileiro por suas atuações intensas. Como foi trabalhar com ele?
Foi muito intenso no melhor sentido possível. Foi um grande colaborador, a gente fechou e bateu o santo. Nos meus curtas, eu já procurava contar a história de gente sofrida, muito desgastada pela vida. Isso também está na aparência delas, pessoas castigadas pela vida. Eu cheguei no projeto pensando em pessoas parecidas com as que estavam nos meus curtas. Para a minha surpresa, nem precisei fazer muito. Eles entenderam minha ideia e cuidaram da desconstrução, já carregaram a amargura em seus personagens. São atores muito experientes, entenderam minha visão.
Não é um Bolsonaro que vai parar o cinema brasileiro.
DENNISON RAMALHO
Diretor de "Morto Não Fala"
O audiovisual passar por uma fase de tensões com o governo federal, que chegou a ameaçar a extinção da Ancine e interferiu sobre quais tipos de obras podem captar recursos por meio da Lei do Audiovisual. Como você avalia esse cenário?
O cenário é desanimador para nós realizadores que estamos acostumados a finalizar nossos projetos com recursos de um determinado modelo, que era muito dependente do dinheiro que vinha do governo. Curto muito o ciclo do cinema brasileiro marginal, de nomes como Júlio Bressane, Rogério Sganzerla e o próprio Mojica, que são autores que mesmo em frente a toda carestia do seu tempo não pararam de fazer e se tornaram um movimento bastante inspirador do nosso cinema. Acho que vamos passar por um negócio parecido. O importante é não parar de fazer. Nem que o autor tenha que fazer sozinho, com seu iPhone. O que a gente tem pra contar vai encontrar seu lugar no mundo. O prestígio que o nosso cinema tem, com filmes acumulando prêmios por festivais mundo a afora, fala por si. Não é um Bolsonaro que vai parar o cinema brasileiro. Vamos fazer com o que estivermos à mão. Inclusive, é um encorajamento para sermos subversivos neste momento. É importante sermos subversivos neste momento.
Quais são os seus próximos projetos?
Dois projetos de longas de terror em andamento. Cruz das Almas é uma história sobre magia negra, sobre invocação de entidades malévolas e uma crise em um casamento. Como isso sai fora de controle e se transforma numa maldição homicida. Uma história sobre obsessão sexual, sobre ciúmes. Também há uma adaptação de uma HQ nordestina, que não posso revelar mais detalhes, mas é a história de terror mais bem executada em solo brasileiro.