No dia 27 de novembro de 2020, quando a pandemia parecia dar uma trégua, os jornalistas Ana Minosso, 46 anos, e Guarany Pacheco, 43, e a filha Ana Laura, 14, partiram Brasil afora. Compraram um trailer, alugaram a casa onde moravam em Florianópolis e colocaram o pé na estrada. O projeto é só voltar para casa em fevereiro de 2022. Quer dizer, para a casa de Floripa, já que eles estão no que eles chamam de "casa rodante". Não têm patrocínio para a aventura e vivem do aluguel e de economias muito bem calculadas em planilhas criadas por Ana. O trailer é confortável, mas pequeno, assim como é reduzida a bagagem, mas eles não deixaram para trás coisas como a caixa de ferramentas de Guarany, as almofadas, ímãs de geladeira e enfeites de casa, todos feitos pela Ana Laura, dos quais Ana não abriu mão.
Para não ficar sem internet —até agora só aconteceu uma vez —, cada um tem no celular o plano de uma operadora de telefonia diferente. Os cuidados para evitar o coronavírus não diferem muito da casa fixa: só um vai às compras e apenas comem o que cozinham no fogão do trailer. Até a semana passada, haviam rodado 6 mil quilômetros a partir de SC. A meta é chegar à Amazônia em junho, mas é a estrada que manda no planejamento. No primeiro mês, só andaram, sem preocupação em divulgar seu roteiro. Depois, criaram perfis no Instagram e no Facebook e até já foram tema de reportagem no Fantástico, em fevereiro, sobre o aumento de vendas de trailers por causa da pandemia.
Confira um texto que o Guarany escreveu, atendendo o meu pedido, e siga os Três no Trailer no Instagram e no Facebook.
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"Quando o câmbio da Pajero 2001 com 293 mil quilômetros já rodados superaqueceu pela segunda vez na Serra do Espinhaço, entre Ouro Branco e Ouro Preto, em Minas, eu e a Ana nos entreolhamos. Foi o momento mais tenso de toda a Expedição Três no Trailer.
Naquelas frações de segundos, lembro de ter pensado na coragem dela e da minha filha, Ana Laura, de 14 anos, quando tivemos a ideia de deixar nossa confortável casa com piscina e três suítes para viver num trailer rodando o Brasil.
Entre a ideia inicial de "comprar um trailer" e o "sim", foram também frações de segundos.
Estávamos no meio da pandemia, ninguém conseguia imaginar o futuro, mas uma certeza nos pegou: sonhos não podem ser adiados! Vamos para a estrada viver uma grande aventura em família. E assim fizemos.
Lembro de ter olhado 2.500 fotos de trailers à venda em todo o Brasil. Desses, três nós visitamos. Escolhemos um que estava parado num camping no interior, veja só, de Minas, havia 20 anos. Mas estava impecável, lindo por dentro e com jeito de casa. Casa rodante, como diz a Ana.
É nessa casa rodante que fazemos praticamente todas as refeições, porque temos cuidado com a pandemia. É nela que a Ana Laura estuda inglês e o nono ano, ambos online. É nela que temos vivido as grandes aventuras dos últimos meses.
Já passamos por mais de 120 cidades, nos instalamos em pelo menos 20, conhecemos gente do Norte e do Sul, do Leste e do Oeste. Com todos aprendemos um pouquinho, como com o amigo Cabelo, de Bento Gonçalves, e sua família, que um dia, do nada, meio encabulados, puxaram conversa para nos oferecer água. Eles veraneavam em Itapoá, Santa Catarina.
Quase passei batido pelas guloseimas. Em casa, tínhamos um forno elétrico. Agora, temos um fogão a gás, desses de quatro bocas. E até me permite alguns truques, que a Ana vai descobrir só quando ler este texto: toda vida ela reclama que compro banana e maçã demais. Como só eu vou ao mercado, por causa da pandemia, a decisão é minha de quantas bananas ou maçãs comprar.
Acontece que ao passar dos dias a banana entra no ponto de fazer cuca. Aí, como temos esse conceito de vida, justamente o conceito que nos empurrou para a expedição no trailer, de viver de forma mais leve e viver com menos, ela fala, com seu jeito de avisar, que vai ter cuca. Eu sorrio pra mim mesmo!
Essa parte da vida mais leve, de viver com menos, foi até que fácil para a Ana Laura. Notamos que a maior dificuldade dela, nos primeiros dias, era com sua individualidade. Sempre respeitamos o espaço de cada um, mas em casa era mais fácil. Agora, mesmo respeitando, a gente se esbarra entre a geladeira e o beliche.
Como sempre a realidade vai se impor na vida da gente, a Ana Laura virou uma grande parceira da estrada. É ela quem instala as sapatas para o trailer não balançar quando estacionado. Ela também ajuda no engate e desengate da Pajero.
E, alegria dos pais, desenvolvemos uma linguagem de sinais para verificar as luzes externas do trailer antes de iniciar cada deslocamento: ela no volante, gira dois estágios da chave e espera meu comando, lá detrás do trailer. Mão fechada, freio; abanando para um lado, pisca... e assim vai. Nossa química já funcionava em casa, ganhou mais afinidade na estrada.
Coisas assim me passaram pela cabeça quando olhei para a Ana na subida da serra. No seu olhar, juro, vi escrito: estamos nessa juntos, vai dar tudo certo. E não é que deu! Ok, ok, não foi tão simples.
O câmbio superaqueceu duas vezes, o motor chegou perto de aquecer, a estrada não tinha acostamento, o trailer pesa 2 mil quilos, fazia calor de 30 graus, levamos 4 horas para rodar 65 quilômetros.
Decidimos, juntos, diminuir o peso da viagem. Despejamos, com dor no coração, toda a água potável do trailer e a reserva extra da Pajero. Água, depois da nossa harmonia familiar, é o bem mais precioso na estrada.
Sabemos que essa não foi a última situação difícil que passaremos. Descobrimos que coragem a gente vai encontrando no caminho. O que eu não imaginava era que após 21 anos de casado, era ali, no meio da serra, que o olhar da minha mulher diria tudo que eu precisava ouvir!"